Esse chamado à simplicidade e à confiança ressoa poderosamente em Marcos 9,33-37. Lá, Jesus corrige a disputa entre os discípulos sobre quem seria o maior e afirma que “quem quiser ser o primeiro deverá ser o último de todos e servo de todos” (Mc 9,35). Lucas 9,46-48 reforça esta lição, acrescentando que “quem receber uma criança em meu nome, está me recebendo a mim” (Lc 9,48). Diante dessas palavras, cabe refletir: como pode a Igreja acolher o Reino se permanece presa ao clericalismo e ao individualismo?
Essa valorização da humildade e dos pequenos tem raízes profundas no Antigo Testamento. O Salmo 34,19-20 revela que o Senhor cuida dos aflitos e quebrantados de coração, enquanto Isaías 66,2 afirma que Deus se inclina para quem “se humilha e treme à sua palavra”. Jesus, portanto, não está inventando algo novo, mas dá continuidade a essa tradição profética ao destacar o valor dos pequeninos — símbolo dos excluídos e vulneráveis —, lembrando-nos que acolher o menor é acolher o próprio Cristo e, portanto, o Pai (Mt 18,5).
Além disso, a proteção divina sobre os pequeninos, realçada em Mateus 18,10, encontra eco em passagens como o Salmo 91,11-12, onde Deus envia seus anjos para guardar os fiéis, e Provérbios 22,6, que enfatiza a importância da educação e proteção dos pequenos. Esta preocupação se concretiza na parábola da ovelha perdida (Mt 18,12-14), que revela o coração misericordioso de Deus ao abandonar as noventa e nove para buscar a que está perdida — gesto também presente em Lucas 15,3-7. Não se trata apenas de uma bela imagem, mas do caminho real da misericórdia e da justiça que Jesus nos convida a seguir.
Compreender essa dinâmica da confiança e do cuidado nos ajuda a conectar com as descobertas da psicologia, que apontam a importância da dependência positiva. Jeremias 29,11 assegura que Deus tem planos de paz e futuro para nós. Paulo, em Filipenses 4,6-7, nos exorta a não nos inquietarmos, mas a confiar plenamente em Deus, superando medo e ansiedade. Por isso, a simplicidade que Jesus propõe não é ingenuidade, mas esperança fundamentada. É como um sol que rompe a névoa da dúvida.
Em termos sociais, essa passagem desafia e subverte as estruturas que exploram e excluem. Jesus convoca a comunidade a ser uma nova realidade, onde o poder se traduz em serviço, a liderança se expressa em humildade, e o cuidado com o vulnerável é o critério da verdadeira autoridade (cf. Atos 6,1-7). A Igreja primitiva encarnou essa ética comunitária, rompendo com as lógicas do império e dos privilégios.
Filosoficamente, o convite a ser como criança ecoa a virtude da humildade, considerada caminho para a sabedoria verdadeira (cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q.161). Além disso, Provérbios 3,5-6 reforça a confiança em Deus: “Confia no Senhor de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento”. É nesta simplicidade — este campo fértil — que Deus semeia sua esperança.
Diante disso, precisamos denunciar com veemência as falsas linhas teológicas que distorcem o Evangelho, como a teologia da prosperidade, que transforma a fé em negócio e o amor em mercadoria. Jesus alerta: “Não ajunteis para vós tesouros na terra...” (Mt 6,19-20). A fé não é mercadoria; o Reino não se vende; a salvação não tem preço. O individualismo que fragmenta a comunidade e o clericalismo que fomenta privilégios rejeitam a humildade que Jesus exige. Filipenses 2,5-8 nos lembra que Cristo se esvaziou, assumindo a condição de servo; somos chamados a imitá-lo.
O Magistério do Concílio Vaticano II reforça essa visão: a Igreja é povo de Deus, chamado a viver a humildade e o serviço em solidariedade com os mais frágeis. O documento Lumen Gentium afirma que “todo o povo de Deus, mas particularmente os que receberam o ministério sagrado, devem imitar com toda a diligência a humildade de Cristo” (LG 32). A Gaudium et Spes destaca que “a Igreja, unida ao seu divino Fundador pelo vínculo da fé e da caridade, sabe que está especialmente comprometida com os pequeninos, os pobres e os fracos” (GS 24). Neste mesmo espírito, o Papa Francisco insiste na necessidade de uma Igreja pobre para os pobres, que renuncia ao clericalismo e se aproxima do povo com ternura e simplicidade, conforme expõe em Evangelii Gaudium (EG 195-196).
Santo Agostinho, um dos grandes Padres da Igreja, também nos oferece luzes preciosas. Em seus sermões, ele afirma que “a verdadeira grandeza consiste em tornar-se pequeno” (De sermone Domini in monte, 18,3), interpretando o Evangelho como um convite à humildade que abre o coração para Deus e para a fraternidade, sinal da pureza que transforma a comunidade.
Assim, somos desafiados a renunciar a nós mesmos, a romper com o orgulho, a soberba e a lógica da meritocracia e do poder mundano, para abraçar a simplicidade, a confiança e a responsabilidade pelo outro, sobretudo pelo mais vulnerável.
Renuncie ao orgulho, abra seu coração, confie como criança e desarme-se da lógica do poder. Que o Senhor nos conceda aprender com as crianças, deixar-nos desarmar pela simplicidade e pela verdade, e renunciar a nós mesmos para confiar plenamente no amor do Pai que nunca abandona as suas ovelhas perdidas. Só assim, com humildade e coragem, a comunidade eclesial poderá ser verdadeiramente lugar onde o Reino se manifesta: uma casa aberta aos pequenos, um refúgio para os excluídos, um espaço de denúncia às falsas doutrinas que mercantilizam a fé e alimentam o egoísmo. Que cada discípulo, inspirado por Jesus, seja fermento vivo no mundo, rompendo as correntes do clericalismo, da teologia da prosperidade e do individualismo voraz.
Não podemos nos acomodar. Não podemos nos calar. O chamado é urgente e desafiante: ser Igreja pobre para os pobres, humilde para servir, simples para amar. Que o Espírito Santo nos fortaleça para vivermos esse compromisso radical, porque o Reino dos Céus pertence aos que se tornam pequenos, confiantes e fiéis até o fim.
Que essa Boa Nova transforme não apenas nossas palavras, mas nossas vidas. E que, ao caminharmos com Jesus, possamos, de fato, construir um mundo onde a justiça, a paz e a misericórdia sejam realidade para todos — sobretudo para aqueles que o mundo insiste em esquecer.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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