O trecho de Mateus 10,16-23 proclamado na sexta-feira da 14ª semana do Tempo Comum, permanece como um dos mais desconcertantes e proféticos discursos de Jesus sobre a missão. Ao contrário das fantasias triunfalistas de um discipulado confortável, Jesus nos desinstala: “Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos.” (Mt 10,16). A metáfora não é decorativa, mas desnudadora. O discipulado cristão não é chamado a triunfar segundo os parâmetros do mundo, mas a resistir com a sabedoria dos mansos e a firmeza dos que se entregam, mesmo entre os dentes do sistema. Nesse breve, mas densíssimo trecho, somos iniciados na gramática do Reino – uma linguagem marcada pelo paradoxo: ternura que enfrenta, amor que denuncia, simplicidade que resiste. Aqui, a leveza do Espírito contrasta com a aspereza do mundo, e a missão se revela como uma travessia radical entre fidelidade e risco.
Essa missão, porém, não emerge no vácuo. O pretexto imediato do texto é o envio dos doze apóstolos em missão (Mt 10,5-15). Eles são investidos de autoridade sobre os espíritos impuros, chamados a curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos e expulsar demônios (Mt 10,8). Mas, antes que o entusiasmo espiritual os envolva num idealismo irreal, Jesus os coloca diante da concretude: haverá perseguições, prisões, ódio e até rupturas familiares (Mt 10,17-22). A missão não é um show de fé performática, mas uma travessia dura num mundo marcado pela resistência à verdade. A hermenêutica aqui nos convida a ver que esta palavra não foi apenas para os Doze, mas é endereçada à Igreja de todos os tempos, especialmente quando ela deseja ser fiel ao Evangelho, e não cúmplice de poderes.
A exegese do texto revela que a advertência de Jesus sobre ser entregue a tribunais, açoitado nas sinagogas e levado diante de governadores (v.17-18) não é paranoia religiosa, mas um retrato da tensão entre o anúncio do Reino e os poderes estabelecidos, tanto religiosos quanto políticos. O termo “sinagogas” sugere conflitos intra-religiosos, o que já nos remete à crítica necessária ao clericalismo – esse modo de organizar o poder eclesiástico como domínio, e não como serviço. A perseguição anunciada por Jesus não vem apenas de fora, mas também de dentro, quando a fé é domesticada, usada como ferramenta de opressão ou como escudo contra a mudança. Como o profeta Jeremias, os discípulos são enviados “como cordeiros mansos ao matadouro” (Jr 11,19), carregando nos ombros não o peso da glória, mas da fidelidade.
É nessa perspectiva que a antropologia bíblica encontra aqui sua radicalidade: Deus escolhe enviar “ovelhas”, não predadores. A fragilidade do missionário não é uma falha estratégica, mas parte da lógica do Reino. O discípulo é alguém que assume a condição da vulnerabilidade, que se deixa habitar pela força do Espírito para transformar o mundo sem reproduzir os mecanismos do poder. A recomendação de ser “prudentes como serpentes e simples como pombas” (Mt 10,16) é um binômio essencial à missão: discernimento e pureza, astúcia e candura, firmeza e ternura. Trata-se de uma espiritualidade lúcida, que compreende a complexidade do mundo sem se deixar seduzir por sua lógica cínica.
Essa espiritualidade lúcida é também profundamente teológica. A missão se sustenta na promessa de que o Espírito Santo falará pelos discípulos (Mt 10,20), desmontando qualquer pretensão de protagonismo ou glória pessoal. O missionário não é um empreendedor religioso nem um influenciador de Deus, mas um vaso de barro (cf. 2Cor 4,7), um canal de um amor que não se curva diante do ódio. Evangelizar não é repetir fórmulas, mas deixar-se guiar por uma Palavra viva que se encarna nas situações concretas. Como ensina Paulo VI na Evangelii Nuntiandi, “o homem contemporâneo escuta mais facilmente as testemunhas do que os mestres” (EN 41).
O Papa Francisco, agora parte do legado profético da Igreja, recordou em sua caminhada que “a missão é uma paixão por Jesus e, simultaneamente, uma paixão pelo seu povo” (Evangelii Gaudium 268). É o Espírito que transforma a perseguição em profecia, o medo em testemunho, o silêncio em anúncio. Sem Ele, a missão seria apenas ativismo ideológico; com Ele, é kenosis e pentecostes. E como o Papa afirmou com clareza em Evangelii Gaudium, a Igreja missionária não pode ser autorreferencial ou mundana, mas “ferida e suja por sair às periferias”, pois “prefere uma Igreja acidentada a uma Igreja doente por se fechar” (EG 49).
Dentro dessa encarnação concreta da Palavra, a missão adquire contornos sociológicos. O Evangelho denuncia toda tentativa de colonizar a fé com ideologias. A perseguição, aqui, não vem apenas da parte de governos estrangeiros ou sistemas ateus, mas de estruturas religiosas e políticas que deturpam a mensagem evangélica. A aliança entre setores do cristianismo e a extrema direita é uma dessas distorções: quando a fé se torna legitimadora de discursos excludentes, nacionalismos teocráticos e políticas anti-evangélicas, ela deixa de ser Boa Nova para os pobres (cf. Lc 4,18) e passa a ser instrumento de opressão. Quando a fé se converte em arma cultural, ela trai o Evangelho e se torna instrumento de exclusão. Em nome de “valores cristãos”, muitos constroem muralhas ideológicas que isolam, em vez de pontes que reconciliam. O cristianismo político que idolatra pátria, mercado e autoridade militar não é o de Jesus de Nazaré, mas o de César.
Esse mesmo desvio aparece na teologia da prosperidade e do domínio – que vê na riqueza e na influência social os sinais da bênção divina. Jesus não promete aplausos, mas perseguição. Não promete likes, mas cruzes. A ideia de que a fé garante sucesso pessoal é incompatível com o Cristo que prepara seus discípulos para serem rejeitados. Essa teologia, popularizada por pregadores digitais e movimentos que vendem um “deus-vitrine”, é o oposto da lógica evangélica: ela evita o escândalo da cruz e propõe um Cristo sem espinhos, um discipulado sem risco, uma Igreja sem profetismo.
Não por acaso, a crítica se estende à teologia do “eu sozinho com Deus”, tão presente nas espiritualidades digitais e individualistas. O discipulado cristão é comunitário, enraizado em uma Igreja que sofre, caminha, erra e acerta em conjunto. O “evangelho do quarto fechado”, quando desconectado do corpo eclesial, corre o risco de se tornar mera espiritualidade narcisista. O Jesus de Mateus envia seus discípulos em missão pública, e não os convida ao isolamento devocional. Evangelizar é correr riscos, expor-se, comprometer-se com o bem comum.
A dimensão psicológica do discipulado, por sua vez, se torna evidente na forma como Jesus reconhece os medos e as inseguranças que acompanham a missão. Ser entregue à morte por familiares (Mt 10,21), ser odiado por todos (Mt 10,22) e ainda assim perseverar, exige uma estrutura interior ancorada na confiança profunda. A promessa: “Não vos preocupeis com o que haveis de dizer...” (Mt 10,19), alivia a angústia e nos reconecta à certeza de que não estamos sós. A fé genuína não é fuga, mas força. Não é máscara, mas coragem de ser. Não é anestesia, mas chama acesa no meio da noite.
Numa sociedade que idolatra a performance e teme a vulnerabilidade, o discipulado se torna um gesto filosófico contra o niilismo. Perseverar, aqui, não é apenas resistir a ataques externos, mas sustentar um sentido diante da banalidade. O discípulo que permanece fiel torna-se, por sua vida, uma crítica viva ao vazio existencial de uma cultura que celebra o imediato e teme o eterno. A missão cristã, como nos sugere Mateus, é uma vida vivida entre tensões: entre o já e o ainda não, entre o Reino anunciado e o mundo que resiste, entre a ternura e o confronto. A perseverança “até o fim” (Mt 10,22) não é um estoicismo estéril, mas uma fidelidade ativa, uma esperança que não se curva. O amor de Cristo é o critério que julga todas as outras fidelidades. A missão é, portanto, existência dialética: leveza do Espírito em meio ao peso do mundo.
Assim, Jesus não nos promete imunidade, mas presença. Não nos livra dos lobos, mas caminha conosco entre eles. A Igreja que se quer fiel a este Evangelho precisa abandonar os palcos e voltar às ruas, sair dos palácios e voltar aos casebres, deixar de querer influenciar e voltar a amar. O futuro da missão não está nos algoritmos, mas na carne. Não está nas estratégias de marketing, mas na conversão do coração. A Igreja que evangeliza é a que ouve o clamor dos pobres, que se deixa ferir pelas dores do povo e que se recusa a ser cúmplice de sistemas que matam.
Por isso, hoje mais do que nunca, somos chamados a ser discípulos prudentes e simples, críticos e compassivos, corajosos e humildes. Enviados não para agradar, mas para anunciar. Não para construir impérios religiosos, mas para testemunhar o Reino. Que o Espírito do Pai fale em nós e por nós, e que, mesmo entre lobos, sejamos sinal do Cordeiro. Que nossas palavras sejam Evangelho vivo, e nossas ações, liturgia cotidiana do Reino. E se a verdade nos custar o aplauso do mundo, que nos sobre a paz de Cristo e a certeza de que, no fim, o amor vence.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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