domingo, 8 de junho de 2025

Um breve olhar sobre João 19,25-34 - Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe da Igreja.


No dia seguinte à Solenidade de Pentecostes, a Igreja nos convida a contemplar a Bem-Aventurada Virgem Maria como Mãe da Igreja. Essa memória, instituída pelo Papa Francisco — de venerável lembrança —, não é apenas uma homenagem mariana, mas uma proclamação teológica de grande densidade e significado pastoral. Celebrá-la logo após Pentecostes é reconhecer que a Igreja, nascida do Espírito Santo, tem em Maria sua figura materna, primeira discípula, mulher orante, serva fiel e presença viva no coração da comunidade.

O Evangelho segundo João nos conduz ao Calvário, à hora extrema, ao “dia das trevas” (cf. Lc 22,53), quando o Amor encarnado foi suspenso entre o céu e a terra. Jesus, vendo sua mãe e o discípulo que Ele amava, declara: “Mulher, eis aí o teu filho (...) Eis aí a tua mãe” (Jo 19,26-27). A tradição patrística — a começar por Santo Agostinho — verá neste gesto um ato fundador: ali não se trata apenas de cuidado filial, mas da constituição simbólica da Igreja, nascida do lado aberto do Crucificado, de onde jorram sangue e água (Jo 19,34), sinais do Batismo e da Eucaristia, sacramentos do novo Povo de Deus.

A cruz é o novo parto. Maria, ao pé da cruz, torna-se mãe da nova humanidade reconciliada. Seu “sim” na Anunciação (cf. Lc 1,38) amadurece agora no silêncio da dor e na fidelidade escandalosa diante do horror. Ali, como profetizou Simeão, a espada atravessa sua alma (cf. Lc 2,35), mas não a faz desistir. Ela permanece de pé (Jo 19,25) — em grego, hestêkê —, como sentinela, como testemunha, como a mulher do Apocalipse que resiste ao dragão (cf. Ap 12,1-6). Maria representa o rosto da Igreja que não foge da dor do mundo, mas permanece fiel ao lado dos crucificados da história.

E quem são hoje esses crucificados? Onde se repete a cena do Calvário?

Maria se une a todas as mães que choram a morte de seus filhos. Seu rosto se reflete no das Mães de Maio, surgidas em 2006, após a execução sumária de mais de 500 jovens durante as operações policiais em São Paulo, no contexto dos conflitos com o PCC. Também nas Mães da Baixada Fluminense, fundadas após a chacina de 2005, em que 29 pessoas foram assassinadas em Nova Iguaçu e Queimados por forças policiais. Essas mulheres, como Maria, permanecem de pé diante das cruzes impostas pelo Estado, pelo racismo estrutural, pela necropolítica, pela indiferença social. Carregam retratos, gritam nomes, desafiam o silêncio cúmplice. Elas encarnam a profecia de Jeremias, que anuncia: “Em Ramá se ouviu uma voz, pranto e grande lamentação; é Raquel que chora seus filhos e não quer ser consolada, porque eles já não existem” (Jr 31,15).

A entrega de Maria ao discípulo amado é também um gesto eclesiológico: a maternidade de Maria é estendida à Igreja. O discípulo representa todos os cristãos. “Acolheu-a em sua casa” (Jo 19,27) não é apenas uma nota doméstica, mas uma convocação a que toda a Igreja a receba como modelo de fé e resistência. Maria não é enfeite litúrgico ou devoção alienante, mas ícone da fé encarnada, sensível à carne dos pobres, comprometida com a justiça do Reino. Como afirmou o Papa Francisco na Evangelii Gaudium:  Ela é a mulher crente que caminha na fé e conserva fielmente a união com seu Filho até à cruz, e depois continua acompanhando os discípulos na expectativa do Espírito Santo” (EG, 287).

Papa Francisco, cuja memória permanece viva na alma do povo, advertia que uma Igreja que esquece Maria, esquece a ternura, o cuidado e a profecia. Esquece que a Mãe do Senhor cantou um Deus que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes (cf. Lc 1,52). Esquece que a Igreja é chamada a ser mãe e serva, não patroa e juíza; samaritana e não fariseia; casa do pão e não caverna de opressão.

Celebrar Maria como Mãe da Igreja é denunciar toda forma de clericalismo, de elitismo espiritual, de cúmplice silêncio diante das injustiças. É recordar que a verdadeira fé cristã não se isola em templos, mas se compromete com os corpos feridos nas ruas, nos presídios, nos acampamentos, nas favelas, nas fronteiras. Maria continua gerando Cristo na carne dos pobres, como dizia Dom Hélder Câmara: “Maria continua grávida do Cristo nos ventres da história sofrida”. A cruz de Jesus não é resignação passiva, mas denúncia profética e solidariedade radical de Deus com os crucificados. Ali, Deus se faz vizinho das vítimas, e Maria, mãe de Deus, se torna mãe dos mártires e dos resistentes, profetisa da esperança pascal.

Que esta celebração nos converta a um cristianismo mais evangélico, mais compassivo, mais pobre, mais fiel à memória de Jesus. Que sejamos uma Igreja de portas abertas, com útero espiritual para acolher os feridos e coragem profética para denunciar os Herodes e Pilatos do nosso tempo.

Maria, Mãe da Igreja, ensina-nos a ficar de pé ao lado dos crucificados, a chorar com os que choram, a acreditar quando tudo parece perdido, e a anunciar, com ternura e firmeza, que a vida ressuscita no coração dos que não desistem de amar.

Prof. DNonato – Teólogo do cotidiano.



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