"Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou" (Jo 14,27-31a)
Às vésperas de sua paixão, Jesus se despede com um dom singular: a paz. Mas ele adverte: “Não a dou como o mundo a dá” (Jo 14,27). A paz de Jesus não é apaziguamento superficial nem cumplicidade com a injustiça. É paz com sabor de Reino, com cheiro de cruz e ressurreição. Essa paz nasce da comunhão com Deus, não da ordem imposta pelo medo. Ela brota de dentro e irrompe no mundo como testemunho de uma nova lógica de vida, uma lógica de amor que desarma a violência, que resiste à opressão sem reproduzi-la.
Teologicamente, essa paz é escatológica: é o dom do Ressuscitado que antecipa, no tempo presente, a plenitude do Reino de Deus. Jesus, ao aparecer aos discípulos no cenáculo após a ressurreição, saúda-os dizendo: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). Essa saudação é mais que consolo; é envio. Quem recebe essa paz é transformado em testemunha e servidor. A paz de Jesus é, portanto, dom e missão: dom que tranquiliza o coração no meio da tempestade, e missão que nos impele a sermos construtores de justiça.
Como recorda a Constituição Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, a paz “nunca é mera ausência de guerra, nem se reduz ao equilíbrio das forças adversas”, mas é fruto da verdade, da justiça, da liberdade e do amor (GS 78). Por isso, não há paz cristã sem justiça social, sem compromisso com os pobres, com os migrantes, com os crucificados da história. “A obra da justiça será a paz” (Is 32,17).
Do ponto de vista antropológico, o ser humano é um ser desejante de paz. No entanto, esse desejo pode ser manipulado por sistemas de poder e estruturas religiosas. O Império Romano falava da Pax Romana, mantida à força pela repressão. Na história da Igreja, nem sempre a paz anunciada foi coerente com a prática de seus líderes. Em muitos momentos, o discurso da paz serviu para justificar cruzadas, colonizações e ditaduras. O mesmo se repete hoje: há quem use a palavra “paz” para silenciar, para manter privilégios, para impedir transformações sociais.
A paz que o mundo oferece é muitas vezes uma paz sem conflito apenas porque há repressão ou censura. Como afirmou Desmond Tutu, “a paz sem justiça não é paz de verdade, é apenas uma pausa entre guerras.” Uma sociedade que silencia os gritos dos pobres e ignora a dor dos marginalizados pode parecer pacífica, mas está apenas adiando o conflito — e traindo o Evangelho.
Nesse contexto, torna-se urgente denunciar o uso distorcido da fé por setores da chamada direita cristã, que invocam a “ordem” e a “família” para justificar o ódio ao diferente, o racismo, a homofobia e a idolatria do mercado. Reduzem o Evangelho a uma moral de costumes e transformam o cristianismo num projeto de poder. Como alertava Martin Luther King Jr.: “A verdadeira paz não é apenas a ausência de tensão, mas a presença da justiça” (Carta da Prisão de Birmingham, 1963). Jesus, ao falar de sua paz, aponta para um projeto de vida em que o amor e o serviço superam o medo e o domínio.
Essa compreensão da paz é também o cerne da não violência ativa de Mahatma Gandhi, que dizia: “Não há caminho para a paz, a paz é o caminho.” A paz, para Gandhi, não era uma meta distante, mas um modo de viver, uma prática cotidiana de resistência ética à injustiça. Seu legado inspirou Luther King, Nelson Mandela e tantas lideranças cristãs e não cristãs comprometidas com a transformação da sociedade sem recorrer ao ódio.
Essa paz também nos obriga a olhar para dentro da Igreja. O clericalismo, denunciado com veemência pelo Papa Francisco, é uma forma de violência espiritual. Ele transforma o ministério num espaço de poder, e não de serviço; fecha a comunidade em torno de seus ritos e títulos, e a torna indiferente à dor do povo. O clericalismo não se vence apenas com reformas estruturais, mas com uma espiritualidade de comunhão e com a corresponsabilidade entre leigos, presbíteros e consagrados. Uma Igreja fiel ao Cristo da paz é uma Igreja que ouve, que partilha, que caminha com o povo e por ele dá a vida.
A paz que Jesus nos dá é também resistência. Ele diz aos discípulos: “Não se perturbe o vosso coração, nem se acovarde” (Jo 14,27). Em tempos de fake news, de polarização ideológica, de intolerância religiosa e de violência simbólica, viver a paz é um ato de coragem. É escolher o diálogo, a escuta, a ternura, a firmeza sem fanatismo, o compromisso com os que mais sofrem. É cultivar no íntimo a confiança em Deus e, no concreto da vida, o compromisso com a justiça.
O mundo nos oferece uma paz que se compra com silêncio, com indiferença, com adaptação ao sistema. Mas Jesus nos oferece outra paz: a que nasce do amor que se doa, do perdão que reconcilia, da cruz que liberta. Como ensinava Paulo VI: “Se queres a paz, trabalha pela justiça.” E como discípulos de Cristo, somos chamados não a fugir do mundo, mas a ser fermento do Reino, onde quer que estejamos. A paz não é fuga, é encarnação. Não é passividade, é missão. Não é neutralidade, é profecia.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
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