terça-feira, 20 de maio de 2025

O Perigo do Amuletismo: Símbolo Sem Alma

Entre o Sagrado e o Profano: Entre o simbólico  e o diabólico 

Vivemos numa era marcada pela ansiedade, em que a busca por proteção espiritual e sentido existencial frequentemente se traduz em consumo religioso. Nessa dinâmica, muitos objetos de devoção cristã — escapulários, crucifixos, medalhas, terços, água benta — deixam de ser sinais vivos da fé e passam a ser tratados como amuletos mágicos, instrumentos de sorte ou defesa automática. O que era símbolo torna-se fetiche; o que era convite à graça vira objeto de superstição.

Não é raro encontrarmos Bíblias abertas no Salmo 91, como se a presença física da página trouxesse proteção, ainda que a Palavra jamais seja lida ou meditada. Terços pendurados em retrovisores ou usados como colares por artistas da moda, desprovidos de oração, tornam-se acessórios estéticos sem mística. O escapulário, sinal de consagração a Maria, por vezes é reduzido a uma espécie de “seguro contra a morte súbita”.

Esse uso desvirtuado dos sacramentais não é exclusivo do catolicismo. No hinduísmo, a fita vermelha (raksha sutra) é usada no pulso para afastar males. No islamismo, o ta’wiz – pequeno recipiente com versículos do Alcorão – é carregado como defesa mágica. No judaísmo, a mezuzá na porta às vezes é tratada como um talismã. No budismo tibetano, mandalas e bandeiras de oração são manipuladas fora de seu contexto meditativo. Mesmo nas tradições afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, objetos como patuás e guias de proteção podem ser esvaziados de sentido ritual e espiritual.

O que une essas práticas? A busca legítima do humano por segurança e transcendência — mas frequentemente reduzida ao uso mágico do sagrado.

A Sagrada Escritura é clara: Deus não se deixa manipular. No Antigo Testamento, os israelitas são derrotados mesmo carregando a Arca da Aliança (1Sm 4), pois haviam perdido a fidelidade à aliança. O profeta Isaías denuncia: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13). Jesus, por sua vez, recusa fazer milagres como espetáculo e condena a fé condicionada ao prodígio (Mt 12,38-39).

Jesus também adverte com firmeza: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai” (Mt 7,21). O uso de símbolos sagrados não substitui a conversão do coração. A cruz no pescoço não salva se os ombros não carregam o outro com compaixão.

No Evangelho de João, os fariseus exigem sinais visíveis, ao que Jesus responde: “Destruí este templo, e em três dias o levantarei” (Jo 2,19), revelando que o verdadeiro templo é seu corpo, é a vida doada. A fé não se ancora em objetos, mas na pessoa viva de Cristo. “Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4,23), disse Ele à samaritana — uma palavra decisiva em tempos de religiosidade desorientada.

Em Atos dos Apóstolos, Simão, o mago, quer comprar o poder do Espírito (At 8,18-23), confundindo dom com produto. Esse episódio é um alerta contra a tentação constante de transformar o dom gratuito de Deus em instrumento de controle.

O apóstolo Paulo, com clareza, nos adverte: “Ainda que eu falasse a língua dos anjos, se não tivesse amor, seria como bronze que soa ou como címbalo que retine” (1Cor 13,1). O símbolo sem amor é só ruído. Mais adiante, ele exorta: “Examinai tudo e guardai o que é bom. Afastai-vos de toda espécie de mal” (1Ts 5,21-22). Eis o caminho do discernimento.

A teologia sacramental da Igreja ensina que os sacramentais “preparam os fiéis para receber o fruto dos sacramentos e santificam as diversas situações da vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1677). Eles não operam por si mesmos, mas dependem da fé e da disposição interior de quem os utiliza. E o parágrafo anterior do mesmo Catecismo (1676) ressalta: “A religiosidade popular é um verdadeiro tesouro do povo de Deus [...] traduz o sentimento profundo das qualidades teologais, como a confiança em Deus, o amor à Virgem Maria, o sentido de solidariedade e hospitalidade.”

O Documento de Aparecida reforça: “A piedade popular, quando bem orientada, enriquece a vida de fé, mas corre o risco de se deteriorar em superstição se for desvinculada da vida comunitária e dos sacramentos.” (DAp 263)

Aqui entra o discernimento entre o simbólico e o diabólico, como propõe Paulo Freire. Para ele, o símbolo aproxima, abre horizontes, une. Já o diabólico — do grego diaboléin — é o que separa, fragmenta, ilude. Quando um sinal sagrado deixa de apontar para Deus e passa a funcionar como instrumento de controle, ele perde sua função libertadora e torna-se diabólico: uma prisão espiritual com aparência de fé.

Por isso, quando o terço é reduzido a acessório de moda, usado no braço ou no pescoço como um amuleto fashion, sem oração nem meditação, estamos diante de uma estética sem mística, de um símbolo sem alma. O mesmo vale para a cruz usada como colar, símbolo máximo do amor crucificado, mas tratada como enfeite ou marca cultural genérica.

A missão da Igreja não é abolir os símbolos, mas evangelizá-los. A fé popular tem uma força mística e afetiva imensa — é “a forma primeira e fundamental de inculturação da fé” (DAp 258). Mas precisa ser acompanhada por uma catequese simbólica, por uma pastoral que ensine a distinguir entre o que é sinal de Deus e o que é superstição funcional.

A caridade pastoral exige que não se condene quem recorre aos sacramentais com pouca formação, mas que se caminhe com essas pessoas, oferecendo sentido, luz e verdade. Como Jesus com a samaritana (Jo 4), a evangelização começa pelo acolhimento da sede humana e se transforma em anúncio da água viva.

É preciso anunciar que a cruz é compromisso, não amuleto. Que o escapulário é entrega a Maria, não garantia mágica. Que o terço é escola de oração, não adereço de proteção automática. E que a Palavra de Deus é viva quando lida, meditada e vivida, não quando abandonada aberta numa estante.

No Brasil, marcado pelo sincretismo, essa missão é ainda mais delicada. A mistura entre tradições religiosas gerou expressões riquíssimas, mas também confusões que precisam ser pacificadas pela luz do Evangelho. Não se trata de purificar a cultura eliminando-a, mas de transfigurá-la a partir do encontro com Cristo.

O desafio que se nos apresenta não é apenas litúrgico ou catequético, mas antropológico e espiritual. É uma disputa por sentido. Num mundo fragmentado, é tentador usar o sagrado como defesa contra o caos. Mas a fé cristã não nos foi dada para nos defender da vida — foi nos dada para nos comprometer com ela até o fim, mesmo que isso signifique carregar a cruz.

Transformar sacramentais em amuletos é trocar o mistério pelo mecanismo, a graça pelo controle, a aliança pelo contrato. E, como alertava Paulo Freire, é deixar de sonhar com a liberdade para se contentar com a ilusão do domínio.

Por fim, é importante lembrar que em todas as tradições religiosas existem símbolos legítimos, carregados de sentido e profundidade espiritual. A estrela de Davi no judaísmo, o crescente no islamismo, o Om no hinduísmo, a roda do dharma no budismo, o colar de contas no candomblé — todos são expressões de uma experiência do sagrado que aponta para o Mistério, o Transcendente, o Outro. Quando esses símbolos são compreendidos, venerados e vividos como pontes de comunhão, cumprem sua função espiritual. Mas quando são manipulados como talismãs de poder, sorte ou proteção automática, sofrem um esvaziamento que é comum a todas as religiões: o adultério da fé. É adulterar o símbolo, tornando-o objeto de controle; é trair o mistério, reduzindo-o a mecanismo. É transformar a confiança em Deus em superstição e o culto em consumo. E isso, em qualquer fé, é sempre idolatria disfarçada de devoção.
Porque o sagrado não se vende, não se veste e não se pendura: o sagrado se vive.

DNonato - Graduado  em História, devoto de Nossa Senhora  de Guadalupe 

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