Zacarias e Isabel são apresentados como “justos diante de Deus” e “irrepreensíveis na observância dos mandamentos” (Lc 1,6), mas marcados por duas feridas profundas: a esterilidade e a velhice. A Escritura rompe aqui com qualquer moralismo religioso que interprete o sofrimento como punição divina. A esterilidade de Isabel não é castigo, assim como a velhice de Zacarias não é sinal de fracasso espiritual. Lucas se insere conscientemente na tradição bíblica das mulheres estéreis que se tornam portadoras de um novo começo: Sara (Gn 18), Rebeca (Gn 25,21), Raquel (Gn 30,22), a mãe de Sansão (Jz 13) e Ana (1Sm 1). Em todas essas narrativas, a vida irrompe onde a lógica social, econômica e religiosa já havia decretado o fim. Antropologicamente, a esterilidade significava perda de identidade; sociologicamente, exclusão; teologicamente, Lucas a transforma em lugar de revelação.
O texto também revela uma crítica implícita à cultura do desempenho. Zacarias e Isabel não produzem mais, não geram, não rendem. São corpos considerados improdutivos. Contudo, é justamente neles que Deus escreve um novo capítulo da história da salvação. A fé bíblica confronta frontalmente a idolatria contemporânea da produtividade, que contamina inclusive a vida eclesial, transformando ministérios em funções, vocações em metas e a graça em resultado mensurável.
Zacarias exerce sua função sacerdotal no Templo, oferecendo o incenso enquanto o povo permanece do lado de fora em oração. O incenso simboliza a súplica que sobe até Deus (Sl 141,2; Ap 8,3-4). No entanto, quando o anjo aparece, o sacerdote se perturba e o medo o domina. O contraste é eloquente: aquele que está habituado ao sagrado não está preparado para o Deus vivo. A religião, quando absolutiza suas formas, torna-se incapaz de acolher a novidade do Espírito. Aqui emerge uma crítica profunda ao clericalismo: Zacarias representa uma instituição religiosa correta, funcional e organizada, mas espiritualmente cansada, incapaz de crer na própria promessa que proclama.
O anúncio começa com uma afirmação decisiva: “tua oração foi ouvida” (Lc 1,13). A pergunta hermenêutica é inevitável: qual oração? Não apenas a oração individual por um filho, talvez já abandonada pelo desgaste do tempo, mas a oração histórica de Israel, que aguardava a consolação prometida (Is 40,1; Ml 3,1). João nasce como resposta a uma súplica coletiva. Essa dimensão confronta a fé individualista e mercantilizada, que transforma Deus em prestador de serviços religiosos. A promessa feita a Zacarias não é prosperidade, mas alegria partilhada: “muitos se alegrarão com o seu nascimento” (Lc 1,14).
“Ele será grande diante do Senhor” (Lc 1,15). No horizonte lucano, grandeza não se mede por poder, mas por pertença e fidelidade. João não beberá vinho nem bebida fermentada, sinal de consagração radical, evocando o nazireato (Nm 6). Será “cheio do Espírito Santo desde o seio materno”, antecipando a lógica de Pentecostes e revelando que o Espírito não está condicionado a templos, cargos ou autorizações institucionais. A experiência espiritual de João no ventre dialoga com Jeremias (Jr 1,5), com o Servo de Isaías (Is 49,1) e se manifesta plenamente no encontro com Maria, quando o menino estremece de alegria (Lc 1,41-44). A vida reconhece a Vida antes da palavra, antes do discurso, antes da instituição.
A missão de João é descrita como recondução: “reconduzirá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus” (Lc 1,16). Lucas escolhe conscientemente o termo “muitos”, e não “todos”. João não é o Messias, não é o fim, mas a travessia. Ele prepara, não substitui. Essa nuance é fundamental para evitar messianismos religiosos e lideranças autorreferenciais. João aponta para Outro e aceita desaparecer: “é preciso que Ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30). Aqui reside uma crítica contundente às lideranças que se colocam no centro e às espiritualidades que confundem mediação com apropriação.
“Irá à frente do Senhor com o espírito e o poder de Elias” (Lc 1,17). A referência a Elias insere João na tradição profética da denúncia e da esperança. Elias enfrentou reis, desmascarou falsos cultos e expôs a idolatria travestida de religião (1Rs 18). João fará o mesmo, denunciando a hipocrisia religiosa e a injustiça social (Lc 3,7-14). A conversão anunciada por João não é intimista nem desencarnada: envolve partilha, justiça, ética e responsabilidade social. Aqui Lucas desmonta qualquer espiritualidade alienante que se desinteressa da realidade concreta dos pobres.
Diante do anúncio, Zacarias reage com incredulidade: “Como terei certeza disso?” (Lc 1,18). Diferente de Maria, que pergunta como a promessa se realizará, Zacarias exige provas. Sua mudez não é apenas punição, mas pedagogia. Ele perde a voz para aprender a escutar. O silêncio imposto ao sacerdote é sinal profético: quando a religião deixa de confiar no Deus que anuncia, ela perde autoridade simbólica e capacidade de comunicação. Orígenes interpreta a mudez como caminho de interiorização; Ambrósio a lê como sinal da passagem da antiga para a nova aliança; Gregório Magno vê no silêncio a pedagogia divina que cura a soberba religiosa.
Enquanto isso, o povo espera do lado de fora. O rito se prolonga, a liturgia se rompe, o tempo se dilata. A espera do povo torna-se imagem da história humana, marcada por silêncios, atrasos e perguntas sem resposta. Psicologicamente, o texto trabalha com frustração e ressignificação; espiritualmente, ensina que a fé madura não elimina o silêncio de Deus, mas aprende a habitá-lo. O silêncio de Zacarias ecoa o silêncio profético entre Malaquias e João, revelando que Deus fala também quando parece calado.
Isabel concebe e se recolhe por cinco meses (Lc 1,24). Seu recolhimento não é fuga, mas gestação. Há um tempo em que a ação de Deus não se anuncia, apenas se prepara. Num mundo obcecado por visibilidade, performance e sucesso religioso, Isabel encarna a espiritualidade do oculto. Sua palavra é teologicamente decisiva: “O Senhor fez isso por mim” (Lc 1,25). Sem triunfalismo, sem espetáculo, ela reconhece que a salvação começa retirando a humilhação e devolvendo dignidade.
Os Padres da Igreja identificaram João como a fronteira entre o Antigo e o Novo Testamento. Agostinho o chama de voz, enquanto Cristo é a Palavra. A voz passa; a Palavra permanece. Irineu de Lyon o insere na economia da salvação como aquele que recapitula a esperança profética e a entrega ao Cristo. João nasce do ventre estéril para anunciar Aquele que nascerá do ventre virginal. Um representa o fim da espera; o outro, o início da nova criação.
Lucas 1,5-25 desmonta toda fé utilitarista, mercantilizada e autorreferencial. Deus não promete sucesso, mas sentido; não oferece domínio, mas conversão; não legitima privilégios, mas inaugura processos. O Advento começa com silêncio, velhice e esterilidade para lembrar que a esperança cristã não nasce daquilo que somos capazes de produzir, mas do que Deus insiste em gerar apesar de nós.
Este texto interpela diretamente a Igreja de todos os tempos. Sempre que a fé se transforma em mercadoria, a voz se perde. Sempre que o poder religioso substitui a escuta, o templo se fecha. Mas Deus continua agindo nas margens, gestando o novo longe dos holofotes. Como João Batista, a Igreja é chamada não a ocupar o centro, mas a apontar caminhos, endireitar veredas e preparar um povo capaz de reconhecer o Senhor quando Ele passar.
DNonato – Teólogo do Cotidiano

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