terça-feira, 16 de dezembro de 2025

​O Demônio e o Palanque: A Teologia do Medo no Capitalismo Religioso

O demônio é como político em tempo de eleição: só aparece entre os pobres. Essa frase, aparentemente provocativa, carrega uma densidade teológica, histórica e sociológica que revela muito mais do que um simples deboche. Ela desnuda uma lógica perversa que atravessa séculos: o uso do medo religioso como instrumento de controle social. Não se trata de uma novidade do nosso tempo, mas, no capitalismo religioso contemporâneo, essa lógica ganha luzes, palco, transmissão ao vivo e monetização.Nos chamados "templos do capitalismo religioso", o demônio nunca descansa. Ele está sempre ativo, sempre disponível, sempre pronto para performar. Pessoas caem, gritam, contorcem-se e rolam no chão. O espetáculo precisa continuar. Curiosamente, o grande ausente é Jesus. Quase ninguém sai dali “possuído por Jesus”. E quando utilizo essa expressão, faço-o com ironia consciente, pois ser tomado por Jesus, no sentido bíblico, significaria assumir sua ética: a partilha radical, a justiça social, a misericórdia que confronta o poder, a humildade que desmonta hierarquias e a coragem profética diante das estruturas opressoras. Isso, todavia, não gera audiência, não sustenta impérios religiosos e não alimenta projetos de poder.

​O que se vê, na prática, são shows gospel cuidadosamente coreografados: palco, iluminação cênica, figurino, linguagem emocional e uma rígida hierarquia de santidade. Disputa-se quem se veste melhor, quem fala mais bonito, quem performa mais fé. Um teatro onde a salvação virou produto e o sofrimento alheio, matéria-prima. A pobreza passa a ser lida como evidência de pecado; a riqueza, como sinal inequívoco da bênção divina. Não é coincidência; é um projeto teológico, político e econômico bem amarrado.

​Quando voltamos às Escrituras, especialmente aos Evangelhos, percebemos que o tema do exorcismo surge num contexto histórico, teológico e bíblico muito específico, que precisa ser resgatado para não ser distorcido. No judaísmo do Segundo Templo, o mal não era compreendido de forma dualista absoluta, como se houvesse dois poderes equivalentes disputando o domínio do mundo. A literatura bíblica e intertestamentária fala de espíritos, forças impuras, enfermidades e opressões sempre relacionadas à ruptura da aliança, à injustiça social, à idolatria política e ao afastamento do projeto de vida querido por Deus.

​Marcos, o evangelho mais antigo, apresenta logo no primeiro capítulo Jesus expulsando um espírito impuro na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1,21-28). O cenário não é um palco, mas um espaço religioso institucional, atravessado por relações de poder, normas rígidas e exclusões silenciosas. O espírito grita, reconhece Jesus e é silenciado. A exegese revela um dado fundamental: o espírito impuro está dentro da própria instituição religiosa. O conflito não acontece fora do sistema, mas no seu interior. O exorcismo, portanto, não é espetáculo nem performance pública, mas um ato profético que desestabiliza a ordem estabelecida.

​Na tradição bíblica, pureza e impureza não são categorias morais abstratas, mas marcadores sociais. Declarar alguém impuro significava afastá-lo da convivência, do trabalho, do culto e da dignidade. Ao expulsar espíritos impuros, Jesus não reforça o medo religioso; ele rompe mecanismos de exclusão e devolve às pessoas sua palavra, seu corpo e seu lugar na comunidade. Diferente do que vemos hoje, ninguém sai do encontro com Jesus dependente dele como mediador permanente. Ao contrário: sai livre, capaz de retomar a autonomia da própria vida.

​O caso do endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20) aprofunda ainda mais essa leitura. O homem vive entre os túmulos, rompe correntes, grita dia e noite. Seu nome simbólico é “Legião”, termo militar romano. A exegese histórica, política e simbólica aponta que o texto não fala apenas de um indivíduo adoecido, mas de um corpo social atravessado pela violência colonial do Império Romano. O demônio aqui não é abstrato: é ocupação militar, exploração econômica, trauma coletivo, desumanização sistemática. Quando Jesus liberta aquele homem, os porcos — símbolo de impureza e também da economia imperial — precipitam-se no mar, imagem bíblica clássica do caos e da derrota das forças opressoras.

​Teologicamente, esse relato afirma que o projeto de Deus é incompatível com qualquer sistema que produza corpos quebrados e subjetividades fragmentadas. Jesus não transforma aquele homem em mascote religioso, nem em propaganda ambulante de milagres. Ele o envia de volta para casa, para sua cidade, para sua história, rompendo com a lógica da dependência espiritual e restaurando sua dignidade.

​Outros relatos de exorcismo seguem a mesma lógica: a filha da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30) revela que a libertação ultrapassa fronteiras étnicas e religiosas; o menino epiléptico (Mc 9,14-29) expõe o sofrimento infantil diante da impotência das estruturas religiosas; a mulher encurvada (Lc 13,10-17), chamada explicitamente de “filha de Abraão”, mostra que o verdadeiro conflito não é com o espírito, mas com uma religião que prefere a lei à vida. Em todos esses textos, o exorcismo é sinal do Reino, jamais espetáculo de poder.

​Na hermenêutica bíblica, portanto, os demônios não funcionam como personagens de filme de terror, mas como linguagem simbólica para nomear tudo aquilo que desfigura o humano e rompe a relação com Deus, com o outro e consigo mesmo. Onde há opressão, violência, exclusão e mentira institucionalizada, ali o mal se manifesta. E é exatamente aí que Jesus atua: não para causar medo, mas para gerar consciência, liberdade e responsabilidade histórica.

​O capitalismo religioso faz exatamente o contrário. Ele precisa que o demônio continue atuando, porque o medo fideliza. Há, sim, manipulação consciente. Há igrejas que chegam a remunerar pessoas para cair, gritar, manifestar. Tudo cuidadosamente ensaiado para reforçar uma narrativa de terror e dependência. Uma pessoa com medo não questiona. Uma pessoa que acredita estar possuída não enfrenta o sistema; ela se culpa. A psicologia social explica bem esse mecanismo: o deslocamento da responsabilidade estrutural para o indivíduo gera submissão e conformismo.

​Do ponto de vista sociológico, essas práticas encontram terreno fértil em contextos de vulnerabilidade. Onde o Estado falha, a religião-espetáculo se apresenta como resposta totalizante. Não oferece transformação estrutural, mas alívio emocional momentâneo. A fé vira anestesia. Marx foi acusado de reduzir a religião a “ópio do povo”, mas o que vemos hoje é mais sofisticado: não é apenas anestesia, é dependência química espiritual, cuidadosamente administrada.

​A filosofia ajuda a ampliar essa leitura. Nietzsche já denunciava uma moral religiosa que glorifica o sofrimento para manter os fracos submissos. Foucault, por sua vez, mostrou como o poder opera sobre os corpos, disciplinando, controlando e produzindo subjetividades dóceis. O culto-espetáculo funciona como um dispositivo de poder: organiza gestos, emoções, narrativas e até as quedas no chão.

​Na teologia, especialmente após o Concílio Vaticano II, a Igreja reafirma que a fé cristã não pode ser reduzida a medo ou superstição. A Gaudium et Spes recorda que tudo o que desumaniza o ser humano é contrário ao desígnio de Deus (GS 27). A Evangelii Gaudium denuncia uma economia que mata e uma religião que se torna cúmplice desse sistema quando espiritualiza a miséria em vez de combatê-la. A Fratelli Tutti insiste que não há verdadeira fé sem compromisso com a justiça social e a dignidade humana.

​A patrística também oferece luzes importantes. Orígenes já afirmava que os demônios operam principalmente através da ignorância e da mentira. Agostinho via o mal não como substância, mas como privação do bem (privatio boni). Ou seja, quanto menos humanidade, mais espaço para o mal. Nada mais distante da ideia de um diabo autônomo disputando almas em batalhas de espetáculo.

​Quando dialogamos com a antropologia, especialmente com as matrizes africanas, essa compreensão se amplia ainda mais. Não existe um mal absoluto personificado. Não há um diabo autônomo. Há desequilíbrios, rupturas, escolhas erradas, feridas históricas. A responsabilidade é sempre humana e coletiva. Essa visão é profundamente libertadora, porque devolve às pessoas o protagonismo da própria história.

​A ideia de um Deus fora de nós e de um demônio fora de nós serve a um propósito claro: retirar das pessoas a consciência do próprio poder. Porque quando alguém entende que é sujeito da sua história, que carrega potência ética, consciência crítica e responsabilidade, não precisa de pastor salvador, bispo intermediário nem de cabresto espiritual. E isso é perigoso para quem lucra com a fé.

​Educação liberta. Consciência liberta. E é exatamente por isso que elas são combatidas nesses espaços de dominação. Uma pessoa que pensa não cai fácil. Uma pessoa que se conhece não rola no chão para agradar ninguém. Jesus nunca pediu que alguém caísse; pediu que se levantasse.

​O verdadeiro exorcismo bíblico não expulsa demônios imaginários, mas desmonta sistemas injustos, rompe correntes sociais, devolve voz aos silenciados e humanidade aos feridos. Essa compreensão não nasce nos evangelhos de forma isolada, mas está enraizada profundamente no Antigo Testamento. O grande exorcismo fundador da fé bíblica é o Êxodo. O faraó não aparece como indivíduo possuído, mas como estrutura demoníaca de poder: concentra riqueza, explora corpos, transforma pessoas em engrenagens e legitima a violência com linguagem religiosa. O Deus do Êxodo não realiza um ritual contra espíritos; Ele liberta um povo de um sistema. O mar que se abre não é espetáculo, é ruptura histórica.

​Os profetas seguem essa mesma linha. Amós denuncia a religião que canta enquanto esmaga o pobre; Isaías expõe o culto que multiplica sacrifícios mas nega justiça; Miqueias resume a vontade divina não em ritos, mas em prática ética: justiça, misericórdia e humildade. Nesse horizonte, o mal não é entidade autônoma, mas realidade histórica produzida quando a aliança é traída e a vida é transformada em mercadoria. Os Salmos de lamento, por sua vez, dão voz a corpos esmagados que descrevem sua dor em linguagem simbólica, quase sempre interpretada depois como possessão, mas que na origem é grito político e espiritual de quem vive à margem.

​Jesus se insere exatamente nessa tradição. Seus exorcismos não inauguram uma técnica espiritual nova, mas radicalizam a lógica profética. Ele não cria ministério especializado, não ensina métodos, não treina discípulos para performances públicas. Pelo contrário, silencia os espíritos, dispersa multidões e devolve as pessoas à vida cotidiana. Nos evangelhos, não há plateia permanente, não há repetição ritual, não há glamour. Onde hoje há holofote, Jesus escolhe o caminho; onde há espetáculo, ele prefere a casa; onde há grito ensaiado, ele impõe silêncio.

​A teologia cristã clássica ajuda a aprofundar essa leitura. Para Agostinho, o mal não tem substância própria: é ausência, ruptura, esvaziamento do bem. Para Orígenes, os verdadeiros demônios operam sobretudo pela ignorância e pela mentira. Gregório de Nissa entende a libertação como processo pedagógico de restauração da imagem de Deus no humano. João Crisóstomo denuncia explicitamente uma religião que se ocupa de ritos enquanto abandona os pobres como a mais grave forma de perversão espiritual. A patrística, portanto, está muito mais próxima de uma crítica estrutural do mal do que de uma demonologia espetacular.

​Essa tradição converge com leituras teológicas contemporâneas, especialmente na América Latina, que identificam o mal também como estrutura histórica. Não basta expulsar um demônio se o sistema que o produz permanece intacto. É por isso que o Magistério recente insiste tanto na crítica à idolatria do dinheiro, à economia que mata e às espiritualidades alienantes. A Evangelii Gaudium denuncia explicitamente uma fé que se acomoda ao mercado; a Gaudium et Spes afirma que tudo o que desumaniza contradiz o projeto de Deus; a Fratelli Tutti alerta para as novas formas de dominação que se travestem de discurso religioso.

​Nesse sentido, o capitalismo religioso é uma atualização sofisticada da velha idolatria. Ele fetichiza a fé, mercantiliza o sagrado e transforma o medo em método pastoral. O demônio precisa estar sempre ativo porque sua presença justifica campanhas, ofertas, dependências e submissões. O culto se converte em dispositivo de poder, moldando corpos, emoções e narrativas. A queda no chão, a repetição do transe, a exposição pública da dor não libertam; disciplinam.

​É preciso, contudo, reconhecer com honestidade que esse risco não é exclusivo de uma tradição religiosa específica. Toda instituição de fé pode produzir suas próprias formas de possessão simbólica. O clericalismo, também denunciado pelo Magistério, cria dependência espiritual, infantiliza consciências e substitui o discernimento pela obediência cega. Onde quer que a fé retire das pessoas a responsabilidade histórica e ética, ali o Evangelho foi traído.

​Jesus nunca pediu que alguém caísse; pediu que se levantasse. Nunca glorificou a dor; denunciou suas causas. Nunca alimentou o medo; chamou à confiança crítica. O Reino de Deus que ele anuncia não é mágico nem intimista: é um projeto histórico que confronta estruturas injustas. E é exatamente por isso que ele foi perseguido e morto. A cruz não é fetiche religioso, mas consequência política de uma vida vivida contra os demônios do poder.

​Talvez a pergunta decisiva não seja se o demônio existe, mas a quem interessa que ele apareça sempre nos mesmos corpos, nos mesmos territórios e nas mesmas classes sociais. Essa seletividade não é acidental. O mal, quando teatralizado, é profundamente classista. Ele nunca se manifesta nos conselhos administrativos, nas bolsas de valores, nos gabinetes refrigerados ou nos condomínios fechados. Ele sempre cai sobre corpos cansados, periféricos, racializados, empobrecidos. Isso revela que não estamos diante de uma batalha espiritual neutra, mas de uma pedagogia do medo aplicada sobre os mais vulneráveis.

​Cristologicamente, isso desmonta qualquer imagem de Deus que legitime terror religioso. O Novo Testamento afirma que Deus se revela plenamente em Jesus (Hb 1,1-3). Logo, toda teologia que produz medo, culpa paralisante e dependência infantil contradiz a revelação cristã. Jesus não é o mediador do pânico, mas da liberdade. Ele não reforça a imagem de um Deus vigilante que pune, mas revela um Deus que restitui dignidade e chama à responsabilidade histórica.

​A pobreza, nos evangelhos, nunca é espiritualizada. Ela é denunciada como fruto de violência econômica, exclusão social e acúmulo injusto. Quando Jesus proclama bem-aventurados os pobres, não os romantiza; ele denuncia o sistema que os produz. O problema nunca é a falta de fé dos pobres, mas a fé excessiva dos ricos em seus próprios privilégios. Toda teologia que transforma miséria em prova espiritual trai o Evangelho.

​Do ponto de vista psicológico, é preciso nomear o que muitas vezes é ocultado por linguagem religiosa. Estados de transe coletivo podem ser induzidos por repetição, música, sugestão, autoridade carismática e pressão do grupo. A catarse emocional não equivale automaticamente à libertação. Corpos que caem podem estar expressando exaustão, dissociação ou necessidade de pertencimento. Jesus, ao contrário, não provoca colapso corporal; ele restaura equilíbrio, integra a pessoa consigo mesma e com a comunidade.

​Biblicamente, isso se conecta ao tema da idolatria. Ídolos, segundo os Salmos, prometem vida mas não respiram, exigem sacrifícios mas não salvam. O capitalismo religioso funciona como um novo Baal: pede ofertas, consome vidas e mantém seus devotos dependentes. Onde há sacrifício humano — ainda que simbólico — ali não está o Deus da vida.

​O dualismo radical entre bem e mal, tão explorado nesses discursos, não nasce da Bíblia, mas de matrizes greco-romanas e de leituras coloniais da fé. Muitas culturas não europeias compreendem o mal como desequilíbrio relacional, não como entidade autônoma. Nelas, cura envolve comunidade, memória, corpo e responsabilidade coletiva. O cristianismo, quando se deixa colonizar por uma teologia do medo, rompe com suas próprias raízes bíblicas.

​Por isso, o discernimento espiritual torna-se critério central. O que humaniza, liberta e responsabiliza vem do Espírito. O que infantiliza, culpa, paralisa e concentra poder não vem do Reino. Jesus não delega sua autoridade a gurus religiosos; ele devolve às pessoas a capacidade de caminhar com as próprias pernas.

​Onde o Evangelho vira espetáculo, o Reino vira mercadoria e o demônio deixa de ser metáfora para se tornar método. O verdadeiro exorcismo continua sendo aquele que faz levantar, não cair; pensar, não temer; agir, não se submeter. E toda fé que precisa manter pessoas no chão para sobreviver já escolheu de que lado está.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

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