- Primeira leitura (do Antigo Testamento pode ser lida uma dessas): Jó 19,1.23-27a; 2 Macabeus 12,43-46; Sabedoria 3,1-9; Sabedoria 4,7-15; Isaías 15,6a.7-9; Lamentações 3,17-26; ou Daniel 12,1-3.
- Salmo responsorial; (se esolhe um deles)23(24),1-2.3-4ab.5-6 (R. cf. v. 6); 114(116A),5.6; 115,10-11.15-16ac (R. v. 114,9); 26(27),1.4.7-8b.9a.13-14 (R. v. 1a ou 13); 22(23),1-3.4.5.6 (R. v. 1 ou 4a).
- Segunda leitura (do Novo Testamento se escolhe uma dessas): 2 Timóteo 2,8-13; 1 Coríntios 15,20-24a.25-28; 1 Coríntios 14,7-9.10c-12; Romanos 8,31b-35.37-39; Romanos 8,14-23; Romanos 6,3-9; Romanos 5,17-21; ou Romanos 5,5-11.
- Evangelho: João 17,24-26; João 14,1-6; João 12,23-28; João 11,17-27; Lucas 7,11-17; Marcos 15,33-39; Marcos 16,1-6; Mateus 25,1-13; Mateus 11,25-30; Mateus 5,1-12a; ou Lucas 12,35-40, qur escolhemos para reflexão.
Entre todas essas páginas, Lucas 12,35-40 ressoa como um eixo espiritual que costura a esperança e a responsabilidade, a eternidade e o tempo, o consolo e o compromisso. É um texto breve, mas denso, que nos convida a viver “de rins cingidos e lâmpadas acesas” — uma imagem simbólica que une a prontidão da fé e a luminosidade da consciência. Ele é proclamado na liturgia do 19º Domingo do Tempo Comum (Ano C), mas encontra ressonância profunda no Dia de Finados, quando a Igreja reza por seus filhos e filhas falecidos e recorda o mistério pascal em que todos estão mergulhados.
“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35).
O gesto de cingir os rins, na cultura semita, era sinal de quem está preparado para agir, como os hebreus na noite da Páscoa (Êx 12,11): prontos para partir, atentos à voz de Deus. A lâmpada acesa, por sua vez, remete à vigilância das virgens prudentes (Mt 25,1-13) e à luz da fé que deve brilhar em meio às trevas do mundo (Mt 5,14-16). No contexto de Finados, essas imagens tornam-se metáforas da alma desperta, do coração que vive o tempo como dom e não como espera passiva. Lucas escreve para uma comunidade que enfrenta o cansaço do adiamento da parusia — a volta do Senhor parece tardar, e a tentação do sono espiritual ronda os discípulos. Jesus, então, propõe uma pedagogia do instante: o Filho do Homem virá “na hora em que menos o esperardes” (Lc 12,40). Esse “menos esperar” não é ameaça, mas convite à autenticidade. A morte, sempre imprevisível, revela a urgência de viver o presente em plenitude. A espiritualidade lucana aqui é profundamente existencial: o que conta não é quando o Senhor virá, mas como estamos vivendo enquanto Ele demora.
O pretexto imediato do texto — o contexto narrativo — é o discurso sobre o servo fiel e prudente (Lc 12,41-48), onde se enfatiza que a responsabilidade cresce com o dom recebido. No contexto mais amplo, há um paralelo claro com Mateus 24,42-51 e Marcos 13,33-37: “Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa.” Em todos os sinóticos, a vigilância é atitude escatológica e ética ao mesmo tempo. Vigiar é viver o tempo como sacramento: o agora é o espaço onde a eternidade toca a história.
A antropologia do texto é profunda. O ser humano é visto como peregrino, servo e hóspede — não dono do tempo, mas guardião dele. A filosofia da existência ecoa aqui: o tempo não é inimigo, é o tecido no qual o sentido se borda. Heidegger chamaria isso de “ser-para-a-morte”, mas em Lucas há um “ser-para-o-Encontro”. A morte não é aniquilação, mas travessia. O ser humano, consciente de sua finitude, é convidado a viver de modo vigilante, amoroso e justo. A fé, portanto, não nega a morte; ilumina-a.
Do ponto de vista psicológico, o texto combate duas tentações opostas: a negação e o desespero. A negação tenta fazer a vida parecer eterna; o desespero antecipa a morte antes do tempo. Jesus propõe a serenidade da vigilância: não medo, mas sentido. Vigiar é manter a alma desperta, é ter o coração acordado para o essencial. Na linguagem simbólica do Evangelho, a lâmpada acesa é também a consciência reta — aquela que, segundo Santo Agostinho, é “a morada de Deus no homem”.
A sociologia do texto nos convida a ver a vigilância não como isolamento, mas como responsabilidade comunitária. Em tempos de individualismo e religiosidade autocentrada, Lucas recorda que o servo fiel é aquele que serve os outros enquanto espera. O contrário da vigilância é o comodismo de quem transforma a fé em consumo, o Evangelho em mercado, a esperança em anestesia. A teologia da prosperidade, que promete bens imediatos e transforma Deus em distribuidor de riquezas, é justamente o oposto do Evangelho deste dia. O servo fiel não acumula, partilha; não espera ser servido, mas serve.
Há ainda uma crítica implícita à teologia do domínio — aquela que imagina o Reino de Deus como conquista de poder político ou moral. Em Lucas, o Senhor “se cingirá e fará os servos sentar-se à mesa, e passando, os servirá” (Lc 12,37). É a inversão radical: o Senhor se torna servo. A lógica do Reino é a do serviço e da humildade, não do domínio e do prestígio. São João Crisóstomo dizia: “Se queres honrar o corpo de Cristo, não o desprezes quando o vês nu.” A vigilância se mede na compaixão.
Nesse sentido, o Dia de Finados é também um ato de denúncia: contra a idolatria do poder e a banalização da morte. Vivemos numa sociedade que fala da morte apenas quando ela serve ao espetáculo ou à estatística. A espiritualidade cristã, porém, nos convida a olhar a morte com reverência e responsabilidade. Cada vida é um evangelho vivido; cada morte é um capítulo que se encerra nas mãos do Autor da existência. O banquete do Reino, que Jesus promete aos servos vigilantes, é o mesmo que se cumpre nas parábolas e nas promessas pascais. João 6,37-40 é o espelho da esperança: “Esta é a vontade do Pai: que eu não perca nenhum dos que me deu, mas os ressuscite no último dia.” Mateus 25,31-46 nos lembra que essa ressurreição se decide na caridade concreta: “Tive fome e me destes de comer...” A vigilância é o amor em movimento.
Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus.” Santo Agostinho via na morte a passagem do tempo para o eterno: “Não morre quem vive em Deus, apenas se muda de casa.” São Gregório Magno, comentando a vigilância, afirmava que “esperar o Senhor é já participar de Sua vinda.” Assim, rezar pelos mortos é também reconhecer que permanecemos ligados a eles no amor — a comunhão dos santos é uma trama viva entre o tempo e a eternidade.
A Gaudium et Spes (n. 18) afirma com ternura e realismo: “O mistério da morte faz com que todo o esforço humano pareça inútil; no entanto, o instinto do coração leva o homem a rejeitar e repelir a ruína total e o fim definitivo de sua pessoa.” A esperança cristã nasce justamente dessa tensão: não negamos a morte, mas a transfiguramos na luz da Páscoa. A Evangelii Gaudium (n. 272) recorda que “a fé é a memória do futuro”, e a Fratelli Tutti (n. 215) fala dos encontros e desencontros que continuam além do túmulo, na comunhão do amor.
Há também um aspecto pastoral e histórico: o Dia de Finados nasceu no século XI, quando São Odilon de Cluny instituiu a celebração para lembrar os mortos esquecidos (narrado aqui em nosso blog), os pobres, os anônimos, os que não tinham quem rezasse por eles. Isso é profundamente evangélico. Recordar os mortos é resistir ao esquecimento, é recusar a lógica do descarte. É proclamar que ninguém se perde na memória de Deus.
Nessa luz, a vigilância de Lucas 12 é também a memória ativa da vida. Cingir os rins é preparar-se para amar. Manter a lâmpada acesa é manter a consciência desperta diante das injustiças. O servo fiel, hoje, é aquele que se opõe à cultura da indiferença, à fé mercantilizada, ao clericalismo que transforma o serviço em privilégio. Vigiar é não adormecer diante da fome, da exclusão, da violência. É carregar dentro do coração uma chama que denuncia e anuncia. Por isso, o texto de Lucas 12 é também um espelho escatológico da parábola das dez virgens (Mt 25). Ambas falam da espera, mas com uma diferença: aqui o foco não está apenas na chegada do noivo, mas na atitude dos servos. É uma espera ativa, comunitária, ética. O servo fiel é aquele que, mesmo quando o Senhor demora, continua acendendo lâmpadas no mundo. A esperança cristã é subversiva porque não espera de braços cruzados; constrói o Reino enquanto espera.
Na morte, o tempo humano toca o mistério divino. O servo que vigia é aquele que vive a cada instante como se fosse o primeiro e o último. A vida cristã é um “agora” contínuo. Como dizia São Francisco de Assis: “Bem-aventurado o servo que ama seu irmão quando está longe como quando está perto; se a morte o encontra amando, ela o encontrará pronto.”
Ao rezarmos neste dia pelos fiéis defuntos, não apenas pedimos por eles, mas também aprendemos com eles. A morte dos que amamos se torna palavra que nos ensina a viver. As lápides são evangelhos silenciosos, e o cemitério é o mais eloquente dos templos. Ali, entre nomes e datas, Deus escreve o evangelho da eternidade: “Ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos” (Lc 20,38). Vigiar, portanto, é viver reconciliado com o tempo, com os outros e consigo mesmo. É caminhar entre os túmulos com o coração cheio de ressurreição. É olhar o crucificado de Lucas 23 e ouvir de novo: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.” É acordar com as mulheres ao amanhecer de Lucas 24 e ouvir o anjo dizer: “Por que buscais entre os mortos aquele que vive?”
Finados não é dia de luto apenas; é dia de lucidez. É memória e profecia. É chamado a manter as lâmpadas acesas, mesmo quando a noite parece longa. É a celebração da comunhão que ultrapassa a morte e a afirmação de que, em Cristo, toda ausência é promessa de reencontro.
“Felizes os empregados que o Senhor encontrar acordados quando chegar.” (Lc 12,37).
Felizes os que permanecem fiéis à esperança, mesmo entre as cinzas. Felizes os que não vendem a fé nem negociam a consciência. Felizes os que amam até o fim, porque o fim é apenas o outro nome do início. Assim, no Dia de Finados, o Evangelho nos devolve a coragem do instante e a serenidade da eternidade. A morte é o ponto final da gramática terrena, mas o Espírito escreve, logo abaixo, uma vírgula: “Ressuscitou.”
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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