O contexto imediato do texto é o jantar na casa de um fariseu, onde Jesus observa a disputa pelos primeiros lugares e pronuncia parábolas sobre humildade e hospitalidade. É dentro desse ambiente social, regido pela etiqueta religiosa e pelos interesses de classe, que alguém, ao ouvir Jesus falar do banquete, exclama: “Feliz aquele que comer o pão no Reino de Deus!” (Lc 14,15). A frase, aparentemente piedosa, é na verdade uma ironia disfarçada de devoção. É como se o interlocutor dissesse: “Sim, todos nós, os puros, os justos, os convidados de sempre, é que estaremos nesse banquete.” Jesus, então, desmonta a autossuficiência religiosa com uma parábola que subverte toda lógica social e teológica do seu tempo.
Um homem dá um grande banquete e convida muitos. Quando chega a hora, envia o servo para dizer aos convidados: “Vinde, tudo está pronto.” Mas, um a um, todos começam a se desculpar. Um comprou um campo e precisa vê-lo; outro, cinco juntas de bois; outro, casou-se e, por isso, não pode ir. À primeira vista, são motivos legítimos: trabalho, propriedade, casamento — pilares da vida social. Contudo, a parábola revela que o problema não está nas realidades em si, mas no lugar que ocupam no coração. Os convidados transformaram dons em deuses, meios em fins, bênçãos em prisões. A mesa do Reino é trocada pela mesa do próprio ego.
Aqui se manifesta o núcleo teológico da parábola: a recusa ao convite é, no fundo, a recusa a Deus mesmo, que se faz presente em Jesus. No horizonte de Lucas, o banquete simboliza o Reino inaugurado por Cristo, onde o amor é partilha e não privilégio, onde os pobres e marginalizados são elevados à dignidade de filhos. É uma imagem profundamente escatológica e eucarística: o Reino é comunhão, não consumo; é celebração, não comércio.
A resposta dos convidados, no entanto, espelha o comportamento de uma humanidade que absolutiza o trabalho, o poder e o prazer, e relativiza o amor e a fé. As desculpas são o retrato psicológico da resistência ao chamado da graça. Quantas vezes, ainda hoje, o coração humano repete o mesmo roteiro de fuga: “não posso agora”, “tenho coisas mais urgentes”, “estou ocupado demais”? A psicologia contemporânea reconhece nesse padrão um mecanismo de defesa contra aquilo que exige deslocamento interior. Aceitar o convite do Reino significa abandonar o controle, deixar-se conduzir pelo mistério, renunciar à centralidade do próprio ego — e isso é o que mais amedronta o ser humano moderno.
A sociologia, por sua vez, nos ajuda a perceber a estrutura excludente que a parábola denuncia. Os primeiros convidados representam as elites religiosas e econômicas de Israel — os que, segundo os padrões sociais, eram os “aptos” a sentar-se à mesa de Deus. Mas o servo retorna com a notícia da recusa, e o senhor da casa reage com ira e compaixão misturadas: “Sai depressa pelas praças e ruas da cidade e traz para cá os pobres, aleijados, cegos e coxos.” É o mesmo grupo que Jesus menciona no início do capítulo (Lc 14,13), quando ensina a convidar justamente quem não pode retribuir. A lógica do Reino rompe o círculo do mérito e introduz o da gratuidade. O banquete de Deus é escândalo para os satisfeitos, mas esperança para os famintos.
Há aqui um eco de Isaías 25,6–8, onde o profeta anuncia que o Senhor preparará, sobre o monte, um banquete para todos os povos, com manjares gordos e vinhos puros, e enxugará as lágrimas de todos os rostos. A promessa se cumpre em Cristo, mas continua a ser frustrada pela recusa dos que se julgam autossuficientes. O servo, figura de Cristo e da Igreja missionária, é enviado de novo: “Sai pelos caminhos e cercas e obriga-os a entrar, para que minha casa fique cheia.” A insistência de Deus é o outro nome da sua misericórdia. Ele não desiste, porque sua casa só se realiza quando todos estão dentro.
Mateus, no capítulo 22, narra uma versão semelhante, com nuances próprias: trata-se da parábola das bodas do filho do rei. Ali, os convidados também recusam e até matam os servos, e o rei envia tropas que destroem a cidade — uma provável referência à destruição de Jerusalém. Mateus acrescenta ainda a figura do convidado sem veste nupcial, símbolo do discipulado autêntico. Em ambos os relatos, a mensagem converge: o Reino é oferta universal, mas exige conversão real. A veste do coração é a disposição de acolher e viver a misericórdia.
A hermenêutica lucana, mais suave e inclusiva, destaca o dinamismo do convite e a abertura do banquete aos marginalizados. Lucas escreve a uma comunidade mista, onde judeus e gentios convivem. Seu Evangelho, marcado pela compaixão, é o mais sensível à dimensão social da fé. Ele mostra que a salvação não é privilégio dos que possuem, mas graça dos que esperam. Por isso, os pobres são os protagonistas da narrativa. Eles não têm desculpas a dar, porque nada têm a perder. Sua pobreza os torna disponíveis para o dom.
A teologia do banquete é, portanto, uma teologia da gratuidade. E, por isso mesmo, é incompatível com as teologias do mercado, do mérito e do domínio. A chamada “teologia da prosperidade”, que transforma a fé em contrato e a bênção em mercadoria, é a negação mais direta deste Evangelho. Nela, o banquete de Deus se converte em bufê privado para quem paga com dízimos e performances religiosas. É o mesmo espírito dos primeiros convidados: “tenho posses, tenho conquistas, não preciso vir.” Mas o Reino não se compra, nem se negocia. Ele é graça que se recebe, não prêmio que se conquista. Também a “teologia do domínio”, que identifica Reino de Deus com poder político ou hegemonia moral, trai o sentido do Evangelho. O Reino não se impõe pela força, mas se oferece como convite livre. Quando a fé se torna instrumento de controle, ela se distancia do Cristo que serviu de joelhos. E quando o clericalismo transforma o ministério em casta eclesiástica, o servo da parábola é substituído por um gerente de almas. A casa de Deus se esvazia de misericórdia e se enche de vaidades.
A parábola é, assim, um julgamento profético sobre toda forma de religião que prefere a segurança das estruturas ao risco da graça. Santo Agostinho, comentando este texto, dizia que “Deus nos criou sem nós, mas não nos salvará sem nós”: a recusa humana fere o coração divino, mas não o detém. Orígenes via no servo o próprio Cristo, que “sai às encruzilhadas” para buscar os que não conhecem o caminho. São João Crisóstomo, pregando a mesma parábola, advertia os ricos de Antioquia: “Não é o ouro, mas a misericórdia que te reserva um lugar no banquete.”
A antropologia nos ajuda a perceber que o gesto de recusar um convite, em qualquer cultura, é mais do que um ato social: é um sinal de afastamento relacional. Recusar o banquete é negar o vínculo. E o Reino é, antes de tudo, relação. No horizonte bíblico, comer junto é partilhar a vida; é fazer comunhão. Por isso, a mesa é um dos símbolos mais profundos da fé cristã. Desde Abraão recebendo os três visitantes em Mambré (Gn 18) até Jesus partindo o pão com os discípulos de Emaús (Lc 24,30), a hospitalidade é o espaço teológico da presença divina.
O Evangelho, portanto, é um convite à mesa de Deus que se faz carne no mundo. A cada Eucaristia, essa parábola se torna presente. Quando o sacerdote proclama: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor”, ecoa o versículo inicial: “Feliz aquele que comer o pão no Reino de Deus.” Mas a liturgia, em sua sabedoria, recoloca a frase no tom certo: não como autoelogio, mas como confissão de fé e de pequenez. Ninguém tem direito à mesa, todos são acolhidos pela graça.
Do ponto de vista histórico, o banquete era, no tempo de Jesus, o lugar de afirmação social. Comer com alguém significava reconhecê-lo como igual. Jesus subverte esse código ao sentar-se com publicanos e pecadores. Lucas 5,29 narra um banquete semelhante, oferecido por Levi após ser chamado: “um grande banquete em sua casa, e havia grande número de publicanos e outros sentados com eles.” A mesa de Jesus é sempre inclusiva e escandalosa. Ele próprio será chamado de “comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores” (Lc 7,34). Essa crítica revela que o Reino começou como banquete dos que o mundo excluía.
Há, nesse sentido, um componente profundamente sociológico e profético no gesto de Jesus. A refeição partilhada é, em toda cultura, expressão de pertencimento. Ao estender o convite aos pobres, aleijados e cegos, Jesus rompe as barreiras da pureza ritual e da estratificação social. O banquete do Reino é o antissistema do mundo: nele, os últimos tornam-se primeiros, e a dignidade nasce da comunhão, não da competição.
O Magistério da Igreja retoma essa dimensão inclusiva com vigor. A Gaudium et Spes recorda que “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e povos” (n. 69). A Evangelii Gaudium insiste que a Igreja deve “sair às periferias” e que “o convite de Jesus é sempre novo, aberto a todos, mas especialmente aos pobres, doentes, marginalizados e esquecidos” (n. 114). E a Fratelli Tutti nos lembra que “ninguém se salva sozinho, só é possível salvar-se juntos” (n. 32). A parábola de Lucas 14 é, nesse sentido, um manifesto contra toda espiritualidade isolada e elitista.
O texto confronta o narcisismo moderno que idolatra a autonomia. Emmanuel Lévinas diria que o banquete do Reino é o rosto do outro que me convoca, é a alteridade que me retira do centro. O convite de Deus é sempre um apelo ético: sair de si para estar com. Martin Buber, ao falar da relação Eu–Tu, talvez encontrasse aqui uma parábola viva: o Reino começa quando o Eu deixa de tratar o outro como objeto e o reconhece como presença.
As desculpas dos convidados revelam o drama da autorreferência. O homem que comprou um campo precisa “vê-lo” — é o olhar possessivo que substitui o olhar contemplativo. O que comprou bois quer “experimentá-los” — é a lógica da produtividade. O que casou “não pode ir” — é o afeto transformado em desculpa. A parábola mostra que o excesso de ocupação é muitas vezes a forma mais sutil de evasão espiritual. O mundo contemporâneo vive esse sintoma: hiperconectado, mas desconectado do essencial; cheio de convites digitais, mas surdo ao convite divino.
O banquete é uma antecipação escatológica da comunhão eterna. É o “já” e o “ainda não” do Reino. Cada gesto de partilha, cada ato de justiça, cada mesa aberta é um ensaio do grande banquete. Mas enquanto houver fome, exclusão, racismo, misoginia, homofobia, elitismo religioso e manipulação da fé, o Reino ainda estará em construção. A parábola é, portanto, um apelo à conversão social.
Quando o servo sai novamente, após encher a casa de pobres, e ainda há lugares, o texto atinge o ápice: “Sai pelos caminhos e obriga-os a entrar.” Não é coerção violenta, mas insistência amorosa. Deus é obstinado em salvar. Seu desejo é que “minha casa se encha”. É a vontade universal de salvação de que fala Paulo: “Deus quer que todos os homens sejam salvos” (1Tm 2,4). A casa vazia é a imagem do coração divino ferido pela indiferença humana. Mas a parábola termina com uma frase dura: “Pois eu vos digo: nenhum daqueles que foram convidados provará do meu banquete.” É o julgamento dos que recusaram o convite. Não se trata de vingança, mas de consequência: quem fecha o coração não pode saborear o amor. O Reino não é castigo, é escolha. A ausência é autoinfligida.
Na história da espiritualidade, essa parábola inspirou inúmeros santos a viver a hospitalidade como expressão do Reino. São Bento fazia da mesa do mosteiro um lugar de acolhida: “Todos os hóspedes que chegam devem ser recebidos como o próprio Cristo” (Regra, cap. 53). São João Crisóstomo dizia: “Se não vês Cristo no pobre à tua porta, não o encontrarás na hóstia do altar.” E São Romero de América denunciava: “De que serve celebrar a missa, se na segunda-feira continuamos construindo a semana da injustiça?”
Hoje, o banquete do Reino continua a ser recusado por novas formas de idolatria: a teologia da prosperidade que reduz Deus a patrocinador de negócios; o clericalismo que transforma o servo em senhor; o individualismo espiritual que confunde oração com isolamento; o cristianismo performático dos “likes” e palcos de adoração. Todos esses são ecos modernos das antigas desculpas. Enquanto uns se vangloriam de campos, bois e casamentos — símbolos da posse, do poder e da afetividade fechada —, outros continuam famintos nas praças e ruas, esperando o convite que o servo insiste em renovar.
O verdadeiro discipulado é aceitar o convite com gratidão e humildade. É viver de modo eucarístico: fazer da própria vida um banquete de partilha. O Reino de Deus não se celebra apenas na liturgia, mas na solidariedade concreta. É ali que o pão se multiplica e o vinho da alegria renasce. No fim, a parábola é também um retrato do próprio Deus. Ele é o Senhor do banquete, mas também o servo que sai às ruas. É o Pai que prepara, o Filho que convida, o Espírito que insiste. Sua casa é o coração da humanidade. E o maior escândalo é que ainda haja lugares vazios.
O Evangelho de Lucas 14,15–24 nos convida, portanto, a discernir onde estamos: entre os convidados que se desculpam ou entre os pobres que aceitam? Entre os que se justificam ou os que se deixam justificar? O banquete está posto. O pão é Cristo. O cálice é sua vida derramada. E o convite ainda ecoa nas encruzilhadas do mundo: “Vinde, tudo está pronto.”
DNonato – Teólogo do Cotidiano

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