No contexto histórico do século I, a lâmpada era um objeto de vida cotidiana, símbolo de orientação, segurança e sustento. Colocá-la sob a cama seria um contrassenso cultural e prático, assim como negar a fé ou esconder a Palavra de Deus é negar a própria vocação. A tradição bíblica é rica nesse simbolismo: “Lâmpada para os meus pés é tua palavra, luz para o meu caminho” (Sl 119,105), e o profeta Isaías anuncia que “o povo que andava nas trevas viu uma grande luz” (Is 9,1-2). A luz não é apenas conforto, mas revelação e orientação, é a presença de Deus que ilumina, aquece e revela caminhos. No livro de Provérbios (4,18) lemos: “O caminho dos justos é como a luz da aurora, que brilha mais e mais até ser dia perfeito.” Essa progressão da luz simboliza a maturidade espiritual e o efeito transformador da Palavra na vida dos discípulos.
Jesus nos adverte sobre a responsabilidade de ouvir: “Prestai atenção à maneira como ouvis” (Lc 8,18). A escuta verdadeira envolve atenção, abertura e transformação. O Evangelho de Mateus (7,21-23) alerta que não basta pronunciar palavras de fé; é preciso agir segundo a vontade de Deus: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai”. Lucas enfatiza que a fé não pode ser acumulada ou escondida; se não é praticada e partilhada, é perdida: “Ao que tiver será dado; ao que não tiver, até mesmo o que pensa ter será tirado.” Esse aviso ecoa a tradição profética: “Ai dos que chamam o mal de bem e o bem de mal, que transformam trevas em luz e luz em trevas” (Is 5,20).
Na psicologia contemporânea, esconder a luz da própria fé ou identidade gera conflitos internos, ansiedade e alienação. Jung fala da sombra, os aspectos reprimidos da personalidade que emergem de forma inesperada. A Palavra e a luz não podem ser suprimidas sem consequências; a repressão da fé ou da verdade pessoal produz escuridão interior. A autenticidade, como defende Carl Rogers, é condição de saúde psíquica: viver na luz significa reconhecer, integrar e expressar a própria verdade. Sociologicamente, a luz exige interação: sociedades que escondem verdades e injustiças enfrentam crises de confiança; estruturas opressoras eventualmente são denunciadas, como demonstram os profetas, de Amós 5,24: “Corra, porém, a justiça como as águas e a retidão como ribeiro perene”. Antropologicamente, a luz é compartilhada; ela orienta rituais, comunidade e cultura, como na tradição da vela e da lamparina nas festas judaicas e cristãs, onde a luz visível é sinal de presença divina e comunhão.
Podemos comparar a metáfora da lâmpada à alegoria da caverna de Platão: a luz é verdade, mas enquanto Platão a reserva a poucos, Jesus a democratiza. A lâmpada deve ser posta de modo que todos vejam; não é privilégio, mas missão. O evangelho denuncia qualquer elitismo espiritual ou gnóstico: a verdade é pública, libertadora, comunitária.
Teologicamente, o texto reforça a missão da Igreja. A Lumen Gentium (n. 1) afirma que a Igreja é luz das nações. A Evangelii Nuntiandi (n. 14) recorda que evangelizar é a razão de ser da Igreja, e o Papa Francisco, em Evangelii Gaudium (n. 49), alerta contra o fechamento: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” Guardar a lâmpada debaixo da cama é imagem do clericalismo, que limita a ação do povo de Deus e sufoca a missão evangelizadora.
A reflexão crítica se estende às distorções contemporâneas: a teologia da prosperidade transforma a fé em mercadoria; a teologia do domínio utiliza a luz como instrumento de poder político; o individualismo espiritual reduz a fé a experiência subjetiva desligada da comunidade; a fé-mercadoria transforma a Palavra em espetáculo para likes e aprovação social. Todas essas formas escondem a lâmpada e contradizem a missão cristã. A luz da Palavra deve iluminar a vida concreta, denunciar injustiças e guiar a transformação social.
A patrística confirma essa perspectiva. Orígenes afirma que a luz da Palavra é dada para ser pregada, não escondida. Irineu lembra que a glória de Deus se manifesta no ser humano vivo e ativo no mundo. São João Crisóstomo compara esconder a fé a enterrar talentos (Mt 25,14-30), e Agostinho insiste que a luz da fé deve transbordar em obras de caridade. O evangelho, assim, liga escuta, prática e frutificação, como na parábola dos talentos, mostrando que a Palavra só se realiza plenamente quando se manifesta em ação transformadora.
A comunidade lucana enfrentava perseguições e pressões para se esconder. O texto se torna um chamado radical à coerência, mesmo sob risco. A promessa de Jesus de que nada ficará oculto é consolo e juízo: a verdade prevalecerá e a escuridão não terá a última palavra. No Antigo Testamento, vemos eco dessa certeza: “Não há nada encoberto que não venha a ser revelado” (Dt 29,29; cf. Lc 12,2-3; Mt 10,26-27). A missão do discípulo exige autenticidade, compromisso com a verdade e coragem de iluminar a vida cotidiana.
As comunidades cristãs resistiram à opressão mantendo a lâmpada acesa, isso implica enfrentar a sombra interior e viver com coerência. Sociologicamente, exige engajamento com a justiça e a solidariedade. Filosoficamente, significa abrir-se à realidade e à verdade, não ao privilégio. Teologicamente, é a encarnação do chamado à missão, denunciando clericalismo, individualismo e instrumentalização da fé. Assim, a lâmpada acesa se torna imagem da Palavra encarnada, da fé vivida, da justiça proclamada, da esperança compartilhada.
Em síntese, Lucas 8,16-18 nos desafia a viver de forma radicalmente transparente e autêntica: ouvir a Palavra, permitir que transforme, compartilhar a luz com os outros. A lâmpada sobre o candelabro simboliza a fé prática, visível, testemunhal, que não se oculta nem se instrumentaliza. Como lembra São Romero: “A Igreja sabe que com a força da Palavra pode iluminar até as noites mais escuras de um povo que sofre uma semana injusta.” Cristo é a luz do mundo (Jo 8,12), e nós somos chamados a refletir sua claridade, não escondendo a luz, mas tornando-a visível, pública, transformadora, libertadora, para que o mundo veja e a vida seja iluminada.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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