quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 7,36-50

O texto de Lucas 7,36-50, proclamado no 11º Domingo do Tempo Comum do Ano C, é revisitado também na 5ª-feira da 24ª Semana do Tempo Comum do ano ímpar. Esta narrativa é uma das mais belas e desafiadoras do evangelho, não apenas pelo drama humano que descreve, mas pela revelação do modo como Deus age em Jesus Cristo. Um jantar aparentemente comum na casa de um fariseu se torna o palco de uma epifania, um lugar em que se cruzam a lei e a graça, o mérito e o dom, a exclusão e a inclusão. É como se a sala de Simão se transformasse em um templo vivo, onde o verdadeiro culto não é prestado por quem se julga puro, mas por quem se reconhece necessitado. O evangelista Lucas, atento à realidade dos marginalizados e à ação subversiva da misericórdia divina, nos introduz num microcosmo que revela as contradições da religiosidade de todos os tempos.
A cena é de uma intensidade simbólica impressionante. Um fariseu, cumpridor da Lei e modelo de piedade aos olhos da comunidade, convida Jesus para uma refeição. Esse gesto, em si, já é carregado de significados: o convite de um religioso a um mestre popular que vivia cercado de pobres e pecadores pode ser tanto um ato de cortesia quanto uma tentativa de controle, de vigilância, como tantas vezes acontece quando a religião institucional se aproxima do profeta para, mais do que acolhê-lo, testá-lo e medir-lhe os limites. O fariseu representa a religião do status quo, aquela que organiza a vida espiritual como contabilidade de méritos, aquela que confunde justiça com rigidez e que esquece que a justiça de Deus é sempre inseparável da misericórdia.
É nesse ambiente marcado pela formalidade e pelo controle que irrompe o inesperado: uma mulher, conhecida como pecadora pública, atravessa a barreira da etiqueta e da exclusão e se coloca aos pés de Jesus. O gesto em si é escandaloso. O corpo dela fala mais do que palavras: lágrimas que banham os pés de Cristo, cabelos soltos que enxugam, perfume caro derramado como se fosse todo o seu tesouro oferecido em adoração. Ela não esconde sua fragilidade, não busca justificativa nem desculpa. O que expressa é pura entrega. Ao contrário do fariseu, que se apresenta como impecável, ela se apresenta como necessitada. Ao contrário do homem respeitável, que julga, ela se oferece como quem suplica e ama.
A hermenêutica do gesto feminino se ilumina com outros textos lucanos. Em Lucas 1,26-38, Maria de Nazaré também aparece em uma cena de ruptura: a jovem de aldeia, sem nome entre os poderosos, é saudada como cheia de graça e chamada a conceber o Salvador. O anjo anuncia, Maria acolhe e responde com seu fiat. Aqui, a pecadora, também anônima, responde com seu corpo e suas lágrimas à graça que reconhece em Jesus. Ambas se tornam ícones da fé que não calcula, que não se escora em títulos ou méritos, mas se abre à graça que desinstala. Se Maria representa o início da encarnação da graça, a mulher pecadora mostra o fruto dessa encarnação: o perdão que gera novo amor.
Os símbolos são muitos e profundos:
  • As lágrimas falam da purificação, do batismo interior que lava a alma, ecoando o clamor do Salmo 51: “Cria em mim um coração puro, renova em mim um espírito firme”.
  • O cabelo solto, num contexto em que a mulher devia manter-se coberta, indica a ousadia de romper convenções sociais e religiosas, gesto de vulnerabilidade que se transforma em sinal de entrega radical
  • O perfume caro revela que, diante de Jesus, o valor não se mede em moedas, mas em amor.
Os paralelos sinóticos ampliam a compreensão. Mateus 26,6-13 e Marcos 14,3-9 apresentam a unção em Betânia, na casa de Simão, não mais o fariseu, mas o leproso, e o gesto se concentra na cabeça de Jesus, sinal da unção régia e profética. João 12,1-8, por sua vez, coloca a cena na casa de Lázaro, com Maria, irmã de Marta, que unge os pés de Jesus e os enxuga com seus cabelos, sublinhando a amizade e a intimidade. Cada evangelista ilumina um aspecto: preparação para o sepultamento, reconhecimento messiânico, amizade que gera generosidade. Mas Lucas, único a apresentar a mulher como pecadora pública, ressalta o contraste entre o julgamento social e o olhar misericordioso de Jesus. O centro não está no perfume ou na preparação para a morte, mas na experiência do perdão que gera amor.
A figura do fariseu encarna o mecanismo de defesa que Carl Jung chamou de sombra: projetar no outro aquilo que não se quer reconhecer em si. O fariseu projeta na mulher o peso do pecado, enquanto sua própria incapacidade de amar e perdoar permanece oculta sob a máscara da religiosidade. Já a mulher vive a autoaceitação radical: reconhece sua vulnerabilidade, expõe sua dor e, justamente por isso, encontra libertação. A psicanálise freudiana nos ajuda a perceber o quanto o recalque moral pode adoecer a alma, enquanto a confissão e a verdade diante de si e de Deus curam.
O texto nos revela outra camada: a refeição na casa de Simão era uma celebração da ordem social, um reforço da hierarquia. Os convidados escolhidos, os lugares à mesa, o protocolo de purificação — tudo demarcava quem era puro e quem estava fora. A entrada da mulher é uma transgressão social, quase uma invasão. Sua atitude rompe a lógica da exclusão e denuncia a hipocrisia da religião que controla o acesso a Deus. Jesus, ao acolhê-la e elevá-la como exemplo de fé, subverte a ordem social e propõe uma nova comunidade fundada não no mérito, mas na graça.
Esse momento nos permite ver que o gesto da unção com perfume era típico de contextos de hospitalidade. Unir o gesto feminino a lágrimas e cabelos indica um deslocamento cultural radical: ela transforma uma prática de honra em um ato de devoção pessoal. Filosoficamente, poderíamos lembrar Emmanuel Lévinas, para quem o rosto do outro nos interpela eticamente: aqui, é o corpo da mulher, com sua dor e seu amor, que se torna epifania da alteridade. Jesus reconhece esse corpo não como impuro, mas como sacramento da fé.
Lucas escreve para comunidades marcadas pela convivência entre judeus e gentios, pobres e ricos, homens e mulheres, escravos e livres. Seu evangelho insiste que a salvação se dá na abertura ao outro. O episódio da pecadora confirma essa teologia: a verdadeira fé não é a dos que controlam o sagrado, mas dos que se abrem ao inesperado da graça.
A parábola dos dois devedores que Jesus conta a Simão é a chave interpretativa. Quem muito foi perdoado, muito ama. O perdão não é recompensa, mas dom. Essa lógica é um golpe mortal contra a teologia da prosperidade, que prega a barganha com Deus: fé em troca de bens. É também denúncia contra a teologia do domínio, que tenta controlar o acesso à graça e estabelecer quem é digno. A cena também destrói a teologia do individualismo, porque a fé da mulher, ainda que pessoal, é pública e testemunhal; não é fechada em si, mas proclamada diante de todos. O clericalismo também é atingido: Simão representa o religioso que controla, mede, julga, e Jesus lhe mostra que o perdão não depende da instituição, mas da misericórdia divina. O Papa Francisco insiste, em Evangelii Gaudium (n. 93-97), que o clericalismo é uma das maiores doenças da Igreja, porque fecha a porta da graça em vez de abri-la.
A figura do servo implacável em Mateus 18,21-35 reforça a interpretação: um empregado perdoado de uma dívida impagável se recusa a perdoar seu semelhante, mostrando que o perdão recebido exige reciprocidade em amor. A mulher pecadora, ao contrário, é livre para amar porque reconhece a dívida que carregava diante de Deus e se deixa perdoar; ela não retém, não barganha, não condiciona. O contraste é evidente: a graça que nos alcança exige transformação do coração, e não mera aparência de religiosidade.
Santo Agostinho via na mulher pecadora o ícone da Igreja, que, pecadora mas amada, se prostra aos pés do Senhor e encontra perdão. São Gregório Magno, embora confundindo a figura com Maria Madalena, ressaltava que a graça é capaz de transformar a maior das misérias em testemunho da mais bela santidade. Orígenes lembrava que Jesus é aquele que não se deixa contaminar pela impureza, mas que, ao contrário, comunica pureza e santidade a quem se aproxima. Santo Ambrósio lia essa cena como uma lição à Igreja, chamada a ser mais casa de misericórdia do que tribunal de condenação. A encíclica Dives in Misericordia de João Paulo II recorda que a justiça de Deus se manifesta plenamente no perdão, e que a misericórdia não é fraqueza, mas a maior expressão do poder divino. O Catecismo da Igreja Católica (n. 1422-1424) ensina que o sacramento da reconciliação atualiza exatamente essa experiência: reconhecer-se pecador e receber o abraço do perdão. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n. 25), afirma que a vida em comunidade é o destino humano, e não o isolamento egoísta. Fratelli Tutti (n. 67) denuncia a lógica da exclusão que ainda marca nosso mundo, e que Jesus rompeu de forma radical ao acolher a pecadora.
Na liturgia, esse texto não é apenas memória, mas atualização: somos nós, hoje, os que estamos ao redor da mesa, e somos convidados a decidir se ficaremos como Simão, julgando e fechados, ou como a mulher, entregando-nos e recebendo perdão. O tom profético desse relato é claro. A Igreja de hoje, muitas vezes seduzida por prestígio social, por poder político e por discursos moralistas, precisa ouvir de novo o chamado de Jesus: não é a contabilidade do mérito que salva, mas o amor que nasce do perdão. Não são os muros erguidos em nome da pureza que revelam Deus, mas as pontes construídas pela misericórdia.
A mulher pecadora é mestra da fé, profetisa da graça, evangelizadora da misericórdia. Ela nos mostra que a verdadeira religião não é a dos títulos, mas a da entrega; não é a do domínio, mas a do serviço; não é a do poder, mas a da vulnerabilidade. Somos chamados, portanto, a escolher nosso lugar na cena: ficaremos entre os juízes que se creem puros, ou entre os que reconhecem a necessidade de perdão e, por isso mesmo, são capazes de amar? O evangelho de Lucas nos desinstala e nos lembra que todos somos essa mulher: pecadores, frágeis, mas amados, perdoados e chamados a amar sem medida. A última palavra não é a condenação, mas o perdão. A última palavra não é a lei fria, mas o amor que cura. E o profeta, ontem como hoje, não é aquele que prevê o futuro, mas quem ousa dizer no presente: a justiça de Deus é misericórdia, e sua misericórdia é a força que transforma o mundo.


DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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