segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 7,11-17

O Evangelho segundo Lucas 7,11-17 nos apresenta uma cena profundamente comovente e reveladora da identidade de Jesus: a ressurreição do filho da viúva de Naim. Este episódio, único no Evangelho de Lucas, é carregado de simbolismo e densidade teológica. Ele é proclamado no 10º Domingo do Tempo Comum (Ano C), durante o Tempo Comum, e também na Terça-feira da 24ª Semana do Tempo Comum (Ano Ímpar), convidando os fiéis a refletir sobre a compaixão de Jesus diante da dor humana e sobre a presença libertadora de Deus em nossas vidas. Na tradição patrística, esse episódio sempre foi lido como revelador da identidade messiânica de Cristo: Ele é Aquele que vem do Pai para restaurar a vida e romper o domínio da morte, antecipando o anúncio pascal, e, ao mesmo tempo, manifesta a centralidade da misericórdia divina que se faz ação concreta no mundo.

Lucas nos apresenta a cidade de Naim, pequena e tranquila, prestes a ser atravessada por um cortejo fúnebre. Jesus chega acompanhado de seus discípulos e de uma multidão, inserindo-se no cotidiano de um povo que enfrenta dor e fragilidade. Ele encontra a viúva, caminhando diante do caixão do seu único filho, envolta em desamparo e solidão. O luto dela é, ao mesmo tempo, pessoal e social: na ausência do marido e do filho, está desprotegida, vulnerável e enfrentando o peso de uma sociedade patriarcal que não garante sustento ou futuro às mulheres em sua situação. A narrativa, portanto, não nos mostra apenas uma tragédia individual, mas expõe a marginalização social e a exclusão dos mais vulneráveis. Ao avistar a mulher e o cortejo, Jesus é movido pela compaixão. Diferente de outras cenas de milagres, aqui não há pedido explícito ou fé declarada; o que o conduz é o próprio coração misericordioso de Deus, que se identifica com a dor humana. Ele se aproxima e pronuncia palavras cheias de ternura: “Não chores” (Lc 7,13). Esse gesto interrompe o luto coletivo e prepara o milagre, revelando que a misericórdia de Deus é sempre ativa, sensível e presente, movendo-se antes mesmo da súplica humana.

Em seguida, Jesus se aproxima do caixão e o toca — um gesto ousado no contexto cultural, pois tocar um morto tornaria qualquer pessoa ritualmente impura. Mas aqui, o toque é instrumento de vida, não de contaminação. E então, em voz firme e autoritária, ordena: “Jovem, eu te ordeno: levanta-te!” (Lc 7,14). O impossível acontece: o jovem se levanta, respira e é devolvido à mãe, que agora vê sua dor transformada em alegria. A narrativa de Lucas enfatiza, assim, que a intervenção de Jesus não é apenas milagrosa, mas transformadora, restaurando não só a vida física, mas também a dignidade e a esperança de quem sofreA reação da multidão é imediata e cheia de temor e admiração. Eles percebem que não se trata de um milagre isolado, mas de um sinal do Reino de Deus se manifestando: “Um grande profeta surgiu entre nós” e “Deus visitou o seu povo” (Lc 7,16). A presença de Jesus inaugura um novo tempo, onde a vida vence a morte e a compaixão de Deus se faz visível. Toda a cena é carregada de simbolismo: o cortejo da morte se transforma em festa da vida; a vulnerabilidade social é elevada à centralidade do cuidado divino; a ação de Jesus revela que Deus não permanece indiferente diante da dor, mas intervém com poder e ternura. Lucas nos mostra, assim, não apenas um milagre, mas uma epifania do amor de Deus, anunciando que o Reino se manifesta onde a vida sofre e clama por restauração.

O Evangelho nos traz um momento em que a atividade libertadora de Jesus se manifesta como verdadeira “visita” de Deus ao seu povo, uma epifania do amor compassivo que não suporta ver a dor e a morte prevalecerem sobre a vida. O contexto imediato da narrativa está na sequência de sinais que Jesus realiza após o Sermão da Planície, confirmando sua palavra com gestos de poder e misericórdia. Antes desse relato, encontramos a cura do servo do centurião (Lc 7,1-10), em que Jesus reconhece a fé de um estrangeiro, homem fora da aliança, antecipando a dimensão universal de sua missão. Logo em seguida, temos a cena de Naim, em que a fé sequer é expressa; o que move Jesus não é a súplica explícita de alguém, mas a sua própria compaixão diante da dor de uma mãe enlutada. Aqui se revela um traço peculiar do terceiro evangelista: destacar a misericórdia como chave hermenêutica da ação de Jesus, que não depende do mérito humano, mas do amor incondicional de Deus (Lc 6,36; Mt 9,36).

No tempo de Jesus, ser viúva sem filhos significava estar entre os mais vulneráveis da sociedade. A estrutura patriarcal atribuía à figura masculina a garantia da proteção econômica, do nome e da dignidade social: primeiro era o pai, depois o marido, e, na ausência destes, o filho. Quando uma mulher se via sem marido e sem filhos, tornava-se símbolo da desproteção, da fragilidade e do abandono. Não havia herança que a sustentasse, não havia futuro assegurado. A morte do filho não era apenas uma tragédia afetiva, mas também uma sentença social, condenando-a à marginalização e à miséria. É nesse cenário que Lucas nos apresenta a viúva de Naim: o cortejo fúnebre que ela acompanha não carrega apenas o corpo do jovem, mas também suas últimas esperanças. Sua dor encarna a pobreza extrema, a invisibilidade e o desamparo, e a Escritura insiste que Deus é o defensor da viúva e do órfão: “O Senhor sustenta a viúva e o órfão, mas confunde os caminhos dos ímpios” (Sl 146,9; cf. Ex 22,22; Dt 10,18; Js 1,17).

Essa cena dialoga com outras passagens do Antigo Testamento. O profeta Elias, em Sarepta, também se compadeceu de uma viúva que havia perdido seu filho e o devolveu à vida com sua oração (1Rs 17,17-24). O mesmo fez Eliseu com o filho da sunamita (2Rs 4,32-37). Lucas evoca esses precedentes proféticos: Jesus é o novo Elias, mas maior do que Elias (cf. Lc 9,8.19), pois sua palavra não apenas invoca, mas ordena: “Jovem, eu te ordeno: levanta-te!” (Lc 7,14). Enquanto Elias e Eliseu pediam a Deus, Jesus age com autoridade divina, mostrando-se ele mesmo a visita definitiva de Deus ao seu povo (cf. Lc 1,68; 4,18-19). Este gesto de restauração da vida também evoca a promessa de Ezequiel sobre os ossos secos: “Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis” (Ez 37,5), mostrando que a ressurreição não é apenas física, mas simbólica de uma vida nova no Reino.

Nos Evangelhos sinóticos, há paralelos importantes. Marcos e Mateus não narram a cena de Naim, mas relatam outras ressurreições realizadas por Jesus: a filha de Jairo (Mc 5,21-43; Mt 9,18-26; Lc 8,40-56) e Lázaro, no Quarto Evangelho (Jo 11,1-44). Em todas elas, a dor humana encontra na compaixão de Jesus uma resposta de vida. A palavra “não chores” (Lc 7,13) ecoa o “não tenhas medo, crê somente” (Mc 5,36), enquanto o gesto de tocar o caixão lembra que a presença de Jesus transforma a realidade do sofrimento (Jo 11,33). Isaías já havia anunciado que o Senhor destruiria a morte para sempre e enxugaria as lágrimas de todos os rostos (Is 25,8), e o Salmo 30 reafirma: “O Senhor transformou meu lamento em dança, tirou minha veste de luto e me cingiu de alegria”. Em Naim, essa promessa começa a se realizar, revelando o Deus que entra na história e intervém no sofrimento humano.

A reação do povo — “Um grande profeta surgiu entre nós” e “Deus visitou o seu povo” (Lc 7,16) — mostra que eles percebem nessa ação não apenas um milagre isolado, mas o sinal de que a história entrou em um novo tempo. A parábola da viúva persistente (Lc 18,1-8) e o cuidado da primeira comunidade para com as viúvas (At 6,1-6; 1Tm 5,3-16) reforçam que a fragilidade não é marginal, mas central no Reino. Tiago resume: “A religião pura e sem mancha diante de Deus é esta: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações” (Tg 1,27). Jeremias, por sua vez, denuncia: “Maldito aquele que perverte o direito do órfão ou nega justiça à viúva” (Jr 22,3), lembrando que a centralidade do cuidado pelos vulneráveis é constitutiva da fé em Deus. Essa cena também nos permite fazer um paralelo com as “viúvas” de hoje. Não apenas mulheres enlutadas, mas todos os que, no tecido social contemporâneo, estão desamparados: mães solo, famílias expulsas de suas casas pelo despejo, trabalhadores descartados pelo sistema econômico, povos indígenas e quilombolas abandonados pelo Estado, jovens assassinados pelo tráfico ou pela violência policial. São viúvas porque lhes tiraram a proteção social, viúvas porque perderam o filho para a bala, para a fome, para o descaso de governos que só veem estatísticas, não pessoas. O profeta Amós já denunciava práticas semelhantes: “Vendem o justo por um par de sandálias, negam justiça ao pobre” (Am 8,6).

Diante dessas viúvas, muitos que deveriam ser sinal da compaixão de Cristo escolhem explorar sua dor. A extrema direita, tanto política quanto religiosa, transforma a fragilidade em moeda de troca, usando o medo e o sofrimento para manipular consciências. Proclama um deus da força e do domínio, em contradição direta com o Deus da compaixão que interrompe cortejos fúnebres. Enquanto Jesus restitui a vida gratuitamente, esses falsos profetas negociam bênçãos e transformam o púlpito em palanque. Também padres e pastores, em não poucos casos, se assemelham aos escribas denunciados por Jesus: “Eles devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações” (Mc 12,40; Lc 20,47). Explorando a fé, pedem ofertas em troca de promessas de milagres, vendem objetos “ungidos” e slogans de prosperidade. O clericalismo, aliado ao mercado religioso, devora a esperança dos pobres em vez de devolver-lhes a vida. Uma Igreja assim é caricatura da Igreja de Cristo.

Os profetas antigos já denunciaram essa perversão: “Ai dos que fazem leis injustas… para negar justiça aos pobres, para arrebatar o direito dos aflitos do meu povo, para que as viúvas se tornem sua presa” (Is 10,1-2). Amós bradou contra os que esmagavam os necessitados e vendiam o justo por um par de sandálias (Am 8,4-6). O Evangelho de Naim nos convoca a ser voz que interrompe os cortejos de morte, como exorta o Papa Francisco: “Uma fé autêntica — que nunca é cômoda nem individualista — sempre implica um profundo desejo de mudar o mundo” (Evangelii Gaudium, 183). Como lembra a Gaudium et Spes, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1), indicando que a experiência de sofrimento é ponto de encontro entre Deus e seu povo.

Santo Ambrósio via na viúva de Naim a imagem da própria Igreja, que chora seus filhos mortos pelo pecado, mas confia na ressurreição. Santo Agostinho lembrava que aquele que ressuscita em Cristo não pode permanecer em silêncio, mas anuncia as maravilhas de Deus (Sermão 98). Santo João Crisóstomo, por sua vez, destacou que a misericórdia que se mostra diante do sofrimento humano é sinal de verdadeira santidade: a compaixão é a forma mais concreta de participação no Reino de Deus. Hoje, essa leitura patrística ecoa num chamado: a Igreja só será fiel a Cristo se, como a viúva, chorar com os que choram (Rm 12,15) e, como Cristo, restituir vida onde há morte.

Por isso, o Papa Francisco insistiu — e seus documentos permanecem como referência — que a comunidade cristã seja “hospital de campanha” (Evangelii Gaudium, 49), lugar de cura e não de negócios espirituais, e que viva a fraternidade universal (Fratelli Tutti, 215), em vez de pactuar com projetos de exclusão. O Evangelho nos lembra que a prática do Reino não se reduz a ritos ou palavras: a compaixão se torna ação concreta, solidariedade efetiva, compromisso com a justiça social. A ressurreição do filho da viúva de Naim é, portanto, profecia viva: Deus não passa indiferente. Ele visita, se compadece e restitui a vida.

Se Jesus fosse hoje às periferias, às filas de hospitais, às terras indígenas ameaçadas, às ruas onde mães choram filhos mortos, Ele não faria discursos de ódio, nem venderia falsas promessas de sucesso. Ele pararia o cortejo, tocaria o caixão, choraria com as mães e diria: “Jovem, eu te ordeno: levanta-te!” (Lc 7,14). Esse gesto não é apenas um milagre isolado, mas a expressão concreta do Reino de Deus, onde a vida é restaurada, a esperança é devolvida e a dignidade é reconhecida. A ressurreição do filho da viúva de Naim nos lembra que Deus não é indiferente ao sofrimento; Ele visita seu povo, se compadece e restitui a vida, convocando cada um de nós a participar de sua ação libertadora.

Essa narrativa é, portanto, um chamado permanente à Igreja e à sociedade: ser sinal de compaixão, justiça e solidariedade. Significa chorar com os que choram, lutar contra a exploração dos vulneráveis e transformar os cortejos de morte em celebrações de vida. Como nos recorda o Papa Francisco, a fé autêntica não é cômoda, nem individualista; ela exige coragem profética, ação concreta e compromisso com aqueles que estão marginalizados (Evangelii Gaudium, 183). A Igreja que ignora as viúvas do nosso tempo trai o Cristo que, em Naim, transformou lágrimas em vida.

Assim, o Evangelho de Lucas nos desafia a olhar para além das palavras e ritos, a entrar na história do sofrimento humano com o coração de Deus e a agir para que a misericórdia se torne realidade tangível. Seguir Jesus é, acima de tudo, tornar-se instrumento de sua compaixão, restaurando vida, dignidade e esperança onde antes havia desamparo e morte. Que a lembrança do cortejo de Naim e do gesto de Jesus nos inspire a ser presença concreta do amor de Deus no mundo, vivendo uma fé que não se limita à contemplação, mas que transforma, cura e salva.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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