quinta-feira, 24 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 20,20-28 - Festa de São Tiago

 
O Evangelho  proclamado no dia de São Tiago é  o seguinte Mateus 20,20-28  , o primeiro dos apóstolos a selar com o sangue a sua fé em Cristo, somos convidados a mergulhar nas profundezas de um texto que desmascara, com ternura e contundência, os mecanismos humanos de poder e ambição: Mateus 20,20-28. A cena nos desestabiliza. Uma mãe se aproxima de Jesus com seus dois filhos, Tiago e João, pedindo para que eles ocupem os lugares de honra no Reino – um à direita, outro à esquerda. Mas sob o verniz do cuidado materno, ressoa o eco de uma lógica de prestígio, status e poder, que ainda hoje seduz comunidades cristãs, lideranças eclesiais e projetos ditos “evangelizadores” que mais reproduzem os valores do império do que o escândalo do Reino.
O pedido não nasce do nada. Poucos versículos antes, Jesus acabara de anunciar, pela terceira vez, sua Paixão (Mt 20,17-19). Mas os discípulos não escutam. Estão tomados por outra expectativa: aguardam um Messias glorioso, triunfante, alguém que lhes devolverá o prestígio social, a supremacia política e a ilusão de uma religião dominante. Há uma cegueira espiritual em curso, não muito diferente da que ainda hoje habita discursos clericalistas que transformam o Evangelho em escada para o sucesso, o altar em palco, o pastoreio em plataforma de influência. Lucas relata cena semelhante quando os discípulos discutem sobre quem seria o maior (Lc 22,24-27), e Marcos também registra esse mesmo episódio da mãe de Zebedeu, embora sem mencioná-la diretamente (Mc 10,35-45). A insistência dos três evangelistas é reveladora: esse tipo de disputa e desejo é recorrente e profundamente humano – e, por isso mesmo, precisa ser redimido.
Jesus, porém, não censura a mãe, nem repreende com dureza os filhos. Ele os confronta com uma pergunta decisiva: “Podeis beber o cálice que eu vou beber?” (Mt 20,22). A pergunta é desconcertante. Fala do destino do Filho do Homem que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (v.28). O cálice, aqui, é símbolo do sofrimento, da entrega, do amor até o fim – o mesmo cálice que Ele suplica ao Pai, no Getsêmani, que lhe seja afastado, caso possível (Mt 26,39), mas que aceita beber, em fidelidade à missão. Trata-se, pois, de uma inversão radical dos critérios do mundo: a glória se manifesta na cruz, e a autoridade se expressa no serviço. Não é à toa que Paulo, escrevendo aos Filipenses, nos recorda que Jesus, “sendo de condição divina, não se apegou à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se” (Fl 2,6-8). O caminho do Reino passa pela kenosis, o esvaziamento de si mesmo, algo que não cabe em projetos de autopromoção religiosa ou estratégias de marketing eclesial.
A tentação do poder não é nova. No deserto, o diabo oferece a Jesus “todos os reinos do mundo e a sua glória” (Mt 4,8), e Jesus recusa. Mas muitos de seus seguidores, ao longo dos séculos, aceitaram esse mesmo convite — e o chamaram de bênção. O Reino de Deus, ao contrário, não vem com aparência (Lc 17,20), não se impõe por dominação, não conquista pelo prestígio. Ele cresce como fermento na massa, discreto, escondido, transformador. Como afirmou o próprio Jesus diante de Pilatos: “Meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36). E quando, após a multiplicação dos pães, a multidão quis proclamá-lo rei à força, Jesus se retirou (Jo 6,15). O poder que busca a visibilidade mata a essência do Evangelho.
São Tiago, o mesmo que hoje celebramos, será martirizado por Herodes Agripa I (At 12,2), tornando-se sinal vivo de que sim, é possível beber o cálice. João, embora não tenha morrido martirizado, também o bebeu, ao viver a solidão do exílio e o peso do cuidado pastoral até a velhice. O martírio, como recordava São Gregório Magno, não está apenas na morte violenta, mas na fidelidade até o fim. Suportar injúrias amando quem nos persegue (cf. Mt 5,44), permanecer fiel sem buscar recompensa, amar sem dominar – tudo isso é forma de martírio cotidiano, muitas vezes invisível, mas não menos fecundo.
No entanto, a lógica que seduz Tiago e João ainda impera em nosso tempo. Na sociedade de consumo, inclusive religioso, há quem transforme a fé em moeda, o púlpito em vitrine, e a salvação em produto. A teologia da prosperidade, que vende milagres, poder, bênçãos materiais e cura instantânea, nada mais é do que a recauchutagem dos pedidos da mãe dos Zebedeus: “coloca meu filho à tua direita!” – ou seja, dá-lhe visibilidade, vantagens, proteção. Em nome de um “Jesus de sucesso”, muitos rejeitam o Cristo crucificado. Esquecem que o Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8,20), que nasceu numa estrebaria e morreu entre criminosos (Lc 23,33). Já denunciava Amós: “Ai dos que estão tranquilos em Sião... deitam-se em leitos de marfim, comem cordeiros dos rebanhos e não se afligem com a ruína de José” (Am 6,1-6). Isaías também bradava: “Ai dos que decretam leis injustas” (Is 10,1). Não há lugar para conforto egoísta num Evangelho que clama por justiça.
A crítica de Jesus, portanto, é sociológica e teológica: “Os chefes das nações as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vós, não deverá ser assim” (Mt 20,25-26). A denúncia não é apenas contra os políticos do Império, mas contra qualquer sistema de dominação, inclusive religioso. A Igreja, que deveria ser sinal do Reino, muitas vezes se torna reflexo da corte: disputa lugares, ostenta vestes, busca bajulação. O profeta Ezequiel já denunciava os pastores que se apascentam a si mesmos e abandonam as ovelhas (Ez 34,1-10). A linguagem da autoridade, quando não passa pelo serviço, se torna autoritarismo. Daí a urgência de um retorno ao Evangelho puro e duro, como pede o Papa Francisco: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas do que uma Igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (Evangelii Gaudium, 49). E mais: “Enquanto uns poucos se beneficiam, muitos outros são privados da dignidade humana” (Fratelli Tutti, 193). A Gaudium et Spes também nos alerta que a técnica e o poder devem ser submetidos à ética do bem comum e do serviço: “a atividade econômica deve servir verdadeiramente ao homem” (GS, 64).
O gesto de Jesus é escandaloso: “quem quiser tornar-se grande entre vós, seja aquele que vos serve” (Mt 20,26). A palavra usada é diakonos, de onde vem “diaconia” – serviço concreto, aos pés dos outros, nas margens. Isso é um tapa na cultura do prestígio, inclusive dentro das comunidades. Há quem sirva para aparecer, quem abrace para fotografar, quem reze para ser visto. O Reino não é espetáculo. O verdadeiro discipulado passa pelo anonimato da entrega. Como dizia Santo Inácio de Antioquia: “É melhor ser cristão em segredo do que o parecer em público.” E como nos recorda Jesus: “Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que faz a direita” (Mt 6,3). A lógica do Reino é o ocultamento fecundo, não a autopromoção piedosa. 
O texto nos obriga também a uma leitura antropológica e psicológica. O desejo de poder não é apenas vaidade – é expressão de carência, de medo, de tentativa de controle. É a ilusão de que ao dominar serei amado, ao subir serei visto, ao mandar serei respeitado. Jesus propõe o caminho oposto: amar sem dominar, doar-se sem esperar retribuição, descer para encontrar o outro. Essa descida, que é kenótica, é também terapêutica: cura-nos da necessidade de aprovação, liberta-nos da obsessão pelo controle. O Evangelho cura o ego, não o infla. “O amor tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo desculpa” (1Cor 13,7) — e também tudo renuncia, se necessário for, para que o outro viva. Como Estevão, primeiro diácono e primeiro mártir, que não buscou trono nem título, mas mesa e cruz. É esse o cálice que o discípulo bebe quando se entrega — sem exigência, sem contrato, sem palco. O martírio cotidiano se dá quando o amor é mais forte que a autopreservação, quando a fidelidade pesa mais que a fama, quando a verdade importa mais que os likes. Não é o púlpito que glorifica, é a cruz carregada em silêncio.
Na festa de São Tiago, é justo perguntar:
  •  Qual cálice temos pedido? 
  • O da glória ou o do serviço? 
  • O da visibilidade ou o da fidelidade? 
Que Tiago interceda por nós, para que possamos não apenas sentar à direita ou à esquerda, mas caminhar com o Cristo servo até o fim. Pois só o serviço liberta, só o amor salva, só o Reino permanece. “Entre vós, não deverá ser assim...” (Mt 20,26) — que essa palavra seja critério, conversão e compromisso. Amém


DNonato – Teólogo do Cotidiano


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