quinta-feira, 19 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 6,19-23


“Não acumuleis para vós tesouros na terra...” (Mateus 6,19).

Palavra direta, cortante, luminosa, mas que, em tempos de confusão entre fé e ideologia, se torna ainda mais necessária. Jesus, o Cristo de Deus, não é apolítico nem neutro: Ele confronta estruturas, derruba pretensões, desmascara aparências. Seu Evangelho jamais se acomodou ao poder opressor, nem ao acúmulo de privilégios, nem à sacralização da desigualdade. Ao contrário: a Boa Nova é um golpe na lógica dos impérios, antigos e modernos, seculares ou religiosos.

O ensinamento de Mateus 6,19-23, proclamado na 6ª-feira da 11ª semana do Tempo Comum, é um chamado à conversão do olhar, do desejo, do coração. Mas também é denúncia profética contra toda forma de idolatria: seja do dinheiro, da religião corrompida ou da política messiânica. Ao dizer “onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (v. 21), Jesus revela que o que acumulamos, seja capital, prestígio, influência ou poder religioso,  define quem somos. E se o nosso “tesouro” é o poder político, o domínio sobre os corpos, o culto à violência, então o coração já está nas trevas. Por isso, Ele alerta: “se teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas” (v. 23).

Nesse contexto, a extrema-direita contemporânea, travestida de guardiã da fé e da moral, propaga um cristianismo desfigurado: fundamentado na força, na exclusão, na meritocracia e na violência — simbólica e real,  contra pobres, mulheres, negros, indígenas, migrantes e dissidentes. Essa ideologia profana o Evangelho quando reduz Jesus a um mascote nacionalista, quando transforma o crucificado em emblema de uma guerra cultural, e a cruz em arma ideológica. Mas Jesus não anda armado, não cultiva o ódio, não incita o medo. Ele é o Cordeiro que se oferece, não o leão que devora. Ele é o servo que lava os pés, não o tirano que impõe seu nome com gritos e bandeiras. 

Como pode alguém, à luz do Evangelho, defender um sistema que acumula riquezas nas mãos de poucos enquanto milhões passam fome? 

Como pode um coração que se diz cristão aclamar governos que cortam direitos, que celebram a tortura, que negam a justiça social, que insultam os pobres, que armam a população e desprezam os refugiados? Tudo isso é o “olho mau” de que fala o Evangelho: a consciência cega pela ideologia, a fé corrompida por interesses terrenos.

Do mesmo modo, cresce entre nós o veneno da teologia da prosperidade, um escândalo contra o Evangelho e uma perversão do coração da fé cristã. Ao transformar Deus em um banqueiro celeste e a fé em moeda de troca, ela trai o Cristo Crucificado, que “não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20) e nos chama a segui-lo no caminho da cruz, não do luxo. Essa falsa teologia instrumentaliza a esperança dos pobres para justificar a cobiça dos ricos, convertendo o Reino de Deus em mercado e o altar em vitrine. Paulo advertiu com veemência: “Os que querem enriquecer caem em tentação e em muitos desejos insensatos e perniciosos” (1Tm 6,9). Já Tiago clama contra os que acumulam riquezas injustas: “O salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que foi retido com fraude está clamando” (Tg 5,4). Não há lugar no Evangelho para um messianismo capitalista, nem para uma espiritualidade que mede bênção por extrato bancário. A teologia da prosperidade serve a Mammon, não a Deus (Mt 6,24), pois troca a cruz pela conta corrente, o discipulado pela autopromoção, a bem-aventurança dos pobres (Lc 6,20) pela idolatria da riqueza. Ela é o “olho mau” que obscurece a fé, cegando consciências e endurecendo corações. Uma Igreja que vende milagres e promete sucesso financeiro em nome de Jesus já se prostituiu com os ídolos deste mundo. Como escreveu o profeta Jeremias, “desde o menor até o maior, todos se entregam à ganância; desde o profeta até o sacerdote, todos praticam a mentira” (Jr 6,13). Quando o lucro se torna doutrina e o altar vira balcão, já não há profecia — só comércio travestido de salvação.

Além dessas deturpações, e não menos grave, é o clericalismo, a doença da alma eclesial que transforma o ministério em privilégio, o altar em trono, o Evangelho em rito sem alma. Clericalismo é a tentação constante de uma Igreja que se esquece de seu Senhor Servo para adotar a postura de senhor feudal. É o acúmulo da autoridade como posse privada, é o abuso de poder travestido de tradição, é a centralização e o silenciamento dos carismas leigos, especialmente das mulheres. Jesus não fundou uma casta sagrada: Ele lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15), proibiu títulos hierárquicos (Mt 23,8-10) e disse: “quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos” (Mc 10,44). O clericalismo trai essa lógica. É o olho mau que obscurece a Igreja. Quando bispos, padres e leigos clericalizados se aliam à extrema-direita, manipulam o Evangelho, negam o Concílio Vaticano II, desprezam os pobres e abafam a profecia, estão servindo a Mammon, e não a Deus (Mt 6,24).

A exegese deste texto nos mostra que o “tesouro” (do grego thēsauros) é tudo aquilo a que damos valor absoluto. Quando esse tesouro é o prestígio social, o controle eclesiástico, a adesão política inquestionável, já nos desviamos do Reino. A Palavra de Deus nos adverte que “não podeis servir a dois senhores” (Mt 6,24). Ou seguimos o Crucificado, ou seguimos César. Ou carregamos a cruz por amor, ou impomos a cruz como arma de poder. Os paralelos bíblicos reforçam esse juízo. Amós denuncia os que “se deitam em camas de marfim” e “não se afligem com a ruína de José” (Am 6,4-6). Isaías proclama: “Ai dos que fazem decretos iníquos... para negar justiça aos pobres e despojar os humildes” (Is 10,1-2). Jesus, em Lucas 16, narra a história do rico que se banqueteava enquanto o pobre Lázaro morria à porta. Ele não foi condenado por ser rico, mas por ser cego. O mesmo “olho mau” de Mateus 6. O mesmo olhar escurecido que hoje defende políticas iníquas, sacrifica o povo em nome de uma falsa segurança e faz do templo um lugar de prestígio em vez de serviço.

A crítica à extrema-direita, à teologia da prosperidade e ao clericalismo, portanto, não é ideológica: é evangélica. É fidelidade ao Cristo pobre, manso e justo. É compromisso com a Palavra que liberta. É coerência com o coração de Deus, que “resiste aos soberbos e dá graça aos humildes” (Tg 4,6).

Como alertou São João Crisóstomo: “Não compartilhar com os pobres é roubá-los e tirar-lhes a vida. Os bens que temos não são nossos, mas deles.”

Uma Igreja fiel ao Evangelho é profética, não bajuladora; é servidora, não dominadora; é sinal do Reino, não correia de transmissão do poder terreno.

O tesouro do cristão não está no templo luxuoso, nem no respaldo político, nem na aprovação dos poderosos. Está na cruz vivida, na partilha real, na luta por justiça, na esperança concreta dos pobres. Como disse Paulo: “Já não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). 

E Cristo não vive em quem serve ao dinheiro, ao clericalismo ou à violência de Estado. Vive nos olhos puros dos que veem o outro como irmão, nos corpos cansados dos que lutam pela vida, nos corações quebrantados dos que confiam na misericórdia. 

Essa palavra de Jesus denuncia não apenas o acúmulo de riquezas materiais, mas também a busca insaciável por poder, status e controle dentro da própria Igreja. Hoje, há bispos que mais parecem CEOs, padres que agem como gerentes administrativos e diáconos que, em vez de servidores da Palavra e da caridade, se tornam fiscais e corretores de templo. Não são raros os casos em que funcionários eclesiásticos, para proteger interesses institucionais, são capazes até de mentir em juízo ou perseguir irmãos e irmãs em Cristo. Quando o coração dos ministros se fixa na instituição em vez do Reino, quando acumulam cargos em vez de servir, a luz que deveria brilhar em seus olhos se torna escuridão, e “quão grandes são essas trevas” (Mt 6,23). O Evangelho de Jesus não legitima estruturas opressoras nem privilégios clericais: ele convoca à conversão, ao esvaziamento e à fidelidade ao Cristo pobre e crucificado.

Porque onde está o teu tesouro, seja ele o Evangelho ou o poder  ali estará também teu coração. E do coração, disse Jesus, procedem todas as coisas.

Que nosso coração esteja, pois, no Reino e não no trono. Que a Igreja de Jesus volte a ser tenda entre os pobres, casa para os feridos e semente do Reino. Não queremos tronos, queremos serviço. Não buscamos poder, mas compaixão. Não marchamos com os impérios, mas com os crucificados da história. Porque “onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17).

 Amém.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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