Texto proclamado na Liturgia do sábado da 1ª Semana da Quaresma e na terça-feira da 11ª Semana do Tempo Comum – Ano Ímpar (ferial).
Nós, todos os irmãos, acatamos atentamente o que diz o Senhor: «Amai os vossos inimigos, fazei o bem a quem vos odeia». Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos passos devemos seguir (cf. 1Pedro 2,21), deu o nome de amigo àquele que O traía (Mateus 26,50) e ofereceu-Se voluntariamente aos que O iam crucificar. Por conseguinte, são nossos amigos todos aqueles que nos infligem injustamente adversidades e angústias, afrontas e ofensas, dores e tormentos, o martírio e a morte. Devemos amá-los profundamente, porque os ferimentos que nos causam nos proporcionarão a vida eterna. O seguimento de Cristo nos exige um algo a mais do que este mundo está acostumado a ver. Ele exige algo que nos distinga, que nos coloque acima da média. Ser cristão é realizar um amor gratuito, sem necessidade de receber recompensas. Isso nos diferencia das demais pessoas. O modelo oferecido por Jesus é Deus Pai que concede o sol sobre justos e injustos, que faz cair a chuva sobre bons e maus (Mateus 5,45). O amor não pode ser seletivo. Não tenhamos medo de viver os valores do Reino apresentados por Jesus a nós em seu Evangelho, pois, como nos lembra o Concílio Vaticano II, a Igreja é “sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen Gentium, 1).
Este trecho do Sermão da Montanha, onde Jesus não apenas propõe uma nova ética, mas inverte a lógica do mundo, ultrapassa o mandamento antigo — marcado pela lógica retributiva do “olho por olho, dente por dente” (cf. Êxodo 21,24) — com a lógica da graça e da misericórdia. Amar o inimigo é, à luz da antropologia bíblica, um gesto que transcende o instinto tribal e o desejo de vingança, marcas profundas do ser humano ferido. Paulo, na Carta aos Romanos, reforça essa visão dizendo que não devemos retribuir mal por mal, mas vencer o mal com o bem (Romanos 12,17-21).
Esse ensinamento é uma provocação radical à ordem estabelecida. Vai contra a cultura do ódio disseminada nas redes sociais, contra os discursos de violência promovidos por setores da extrema direita e da religião vazia, que se perdeu em ideologias de exclusão e intolerância. O Evangelho é, hoje mais do que nunca, um grito contra a banalização do inimigo e contra a desumanização do outro. O Papa Francisco, em sua encíclica Fratelli Tutti, adverte para a urgente necessidade do diálogo, da fraternidade e do amor social, como resposta a essa cultura do descarte e da hostilidade.
Pedro escreve: “Cristo padeceu por vós, deixando-vos exemplo para que sigais os seus passos” (1Pedro 2,21). A prática de Jesus, que chama Judas de “amigo” mesmo sabendo de sua traição (Mateus 26,50), é o ápice do amor gratuito e incondicional. Aqui está a diferença cristã: a fé não é performance moralista, mas participação na própria lógica do Reino, onde a misericórdia triunfa sobre o juízo (cf. Tiago 2,13).
O que Cristo propõe não é passividade diante da injustiça, mas resistência ativa: amar o inimigo é um ato de desobediência profética ao ciclo da violência. É por isso que os que causam dor, perseguição e até a morte — como nos tempos dos mártires e dos atuais defensores dos direitos humanos — tornam-se, paradoxalmente, instrumentos de salvação. A cruz não é glorificação do sofrimento, mas a revelação de um amor que não se dobra ao mal (cf. Romanos 8,37-39).
O Pai faz nascer o sol sobre bons e maus, envia chuva sobre justos e injustos (Mateus 5,45). Aqui, Jesus critica diretamente a religiosidade exclusivista que se julga merecedora do favor divino. Essa é uma denúncia clara ao clericalismo que seleciona quem “merece” o altar e quem deve ficar à margem — sejam mulheres, pobres, LGBTQIA+, ou os que questionam estruturas de poder dentro da Igreja. Essa postura reflete-se também nos grupos que, usando uma linguagem pseudo-cristã, promovem discursos de ódio contra minorias, negam o sofrimento dos pobres, zombam da empatia e da justiça social. A extrema-direita religiosa, quando absolutiza a doutrina e silencia a compaixão, nega o próprio Evangelho.
O amor aos inimigos, longe de ser submissão, é ato de rebeldia. É um “não” ao ciclo de ódio que alimenta guerras, exclusões, perseguições políticas e religiosas. É pedagógico e transformador. A educação cristã, inspirada pela pedagogia de Jesus, não forma apenas obedientes, mas seres capazes de amar gratuitamente, até aqueles que nos fazem mal. Ao propor esse amor sem fronteiras, Jesus planta no coração humano uma nova possibilidade: romper com a lógica meritocrática e assumir a gratuidade como caminho de santidade. Isso é profundamente escandaloso num mundo que valoriza o mérito, a punição, o controle e o poder. A perfeição cristã, como nos ensina o próprio Senhor, não é moralismo rígido, mas maturidade no amor: “Sede perfeitos, como vosso Pai celeste é perfeito” (Mateus 5,48). É viver além do esperado, além do razoável, além do merecido. É, como escreveu o teólogo Dietrich Bonhoeffer, “seguir Jesus mesmo quando isso nos leva à contradição e ao sofrimento”. Na sociedade da polarização, onde se grita e se cancela ao invés de dialogar, o cristão é chamado a ser sinal de reconciliação. Isso não significa aceitar injustiças, mas superá-las com a força revolucionária do amor que transforma o mundo.
A santidade não se manifesta em templos adornados por vaidades clericais ou dogmas vazios de compaixão, mas em cada gesto concreto de quem se recusa a odiar, mesmo sendo odiado (cf. 1 João 3,18).
Oração:
Senhor, ensina-nos a amar como Tu amas. Livra-nos da armadilha da indiferença e do ódio travestido de justiça. Que possamos viver o Evangelho com coragem profética, mesmo quando isso nos custar o conforto, o prestígio ou a segurança. Amém.
DNonato - Teólogo do cotidiano
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