A Terra de Israel, ao longo dos séculos, tornou-se mais que um território: converteu-se em símbolo, mito, campo de disputa e instrumento ideológico. Desde a promessa feita a Abraão até a criação do moderno Estado de Israel em 1948, essa terra passou por rupturas, reformulações e, sobretudo, profundas distorções do que originalmente simbolizava uma aliança com a humanidade. A terra prometida, na narrativa bíblica, nunca foi apenas uma posse, mas uma herança condicionada pela justiça, pela fidelidade e pela prática da misericórdia.
A promessa feita a Abraão (Gn 12,1-3; 15,18)¹ era acompanhada de um propósito ético: “em ti serão abençoadas todas as famílias da terra”. O chamado de Abraão não era para fundar um império, mas para se tornar pai de uma fé que abençoasse a humanidade. A terra era parte dessa promessa, mas nunca foi um direito absoluto ou militarizado. A posse da terra estava sempre condicionada à fidelidade ao Deus da justiça (cf. Dt 8,11-20)².
A entrada de Josué em Canaã é descrita na Bíblia como um ato de conquista divina, mas a análise histórica e arqueológica contemporânea problematiza essa narrativa, vendo-a menos como uma invasão típica da antiguidade — marcada por violência, deslocamento e imposição cultural — e mais como um processo gradual, envolvendo migrações, assimilação cultural e conflitos locais, e não uma invasão rápida e total⁴. O livro de Josué relata a destruição de cidades como Jericó e Ai (Josué 6-8), ações que são interpretadas por muitos estudiosos como episódios simbólicos ou ideologizados para afirmar a soberania do Deus de Israel sobre a terra³.
Este padrão de “invasão” é reflexo das lógicas bélicas das sociedades antigas, que legitimavam a posse da terra pelo uso da força, associando-a à bênção divina condicionada à obediência. Contudo, o texto bíblico também contém advertências severas sobre a fidelidade a essa aliança, sinalizando que a terra é um dom precário, dependente da justiça social e do compromisso com o Deus da aliança (Josué 23,12-16)⁵
Com a monarquia, Israel se aproxima dos modelos de poder das outras nações. A centralização política sob Davi e Salomão traz estabilidade, mas também opressão, desigualdade e idolatria. A aliança tornou-se uma formalidade religiosa, e o profetismo emerge como denúncia: “Este povo se aproxima de mim com a boca... mas o coração está longe” (Is 29,13)⁶. A fé é reduzida a aparato estatal, e a justiça social se esvai.
A infidelidade leva à tragédia: o Reino do Norte cai diante da Assíria (722 a.C.); o Sul é deportado à Babilônia (586 a.C.). O Exílio rompe o vínculo direto com a terra, e a fé se reinventa: nasce o judaísmo da Torá, da memória e da esperança. Surge um novo Israel, espalhado, errante, mas guardando consigo a promessa — não mais como território, mas como identidade espiritual. A terra não está mais sob os pés, mas na liturgia, nos salmos, na oração voltada a Jerusalém. Começa assim a diáspora, a dispersão que moldaria a alma judaica por mais de dois milênios.
A Terra Prometida não pode ser discutida sem recordar a origem dos povos semitas na Bíblia: Abraão, pai de muitos povos, teve dois filhos — Ismael e Isaac (cf. Gn 16 e 21)⁷ Ismael, o primogênito, é considerado pelos muçulmanos como seu ancestral direto. Isaac, filho da promessa, é pai de Jacó, que recebe o nome de Israel. Mas o texto bíblico não apresenta a bênção de Isaac como anulação da bênção de Ismael. Ao contrário: Deus abençoa ambos, promete fazer de Ismael uma grande nação (Gn 21,13.18)⁸ e o acompanha no deserto.
A Bíblia não coloca Ismael como amaldiçoado, mas como irmão. O conflito entre seus descendentes é posterior, fruto de interpretações enviesadas que instrumentalizaram a genealogia para justificar exclusões políticas e teológicas. O mesmo vale para os filhos de Isaac: Esaú, o mais velho, e Jacó, o mais novo. O direito de primogenitura é negociado e depois tomado com astúcia, o que gera rancor e exílio. No entanto, mais tarde, Jacó e Esaú se reconciliam (Gn 33)⁹ , e Esaú torna-se também um grande povo.
Ora, se a herança fosse exclusivamente do mais velho, ela pertenceria a Ismael e Esaú. A Bíblia, no entanto, subverte essa lógica patriarcal e nos mostra que a herança de Deus não segue critérios humanos de mérito, sangue ou posse. A bênção, quando autêntica, é sempre vocação para servir, e não direito para dominar.
Ao recordar que todos descendem de Abraão, e que todos foram abençoados — ainda que por caminhos distintos — o texto sagrado desmonta o uso excludente da genealogia. O Deus de Abraão não é monopolizável. Sua promessa é maior que fronteiras políticas, maior que etnias, maior que exércitos. Ao longo da história, os judeus viveram como minoria perseguida em diversos impérios: do helenismo à Roma, da Inquisição às proibições em guetos europeus. A mística da terra prometida permaneceu viva, não como plano militar, mas como saudade, como símbolo escatológico de retorno e reconciliação. Mas a modernidade traria uma ruptura.
O sionismo do século XIX emerge em meio ao nacionalismo europeu, buscando dar ao povo judeu um território onde pudesse existir como nação soberana. Laico, político e inspirado por modelos ocidentais de Estado-nação, o sionismo rompe com o tempo litúrgico da promessa e entra no tempo cronológico da geopolítica. A fundação do Estado de Israel em 1948, após a partilha da Palestina pelas Nações Unidas, é a concretização dessa visão política — não da promessa bíblica. É uma criação moderna, com exército, fronteiras e interesses econômicos. Contudo, como toda criação política, ela foi marcada por exclusões inerentes: a Nakba (“catástrofe” em árabe) representou o deslocamento forçado de mais de 700 mil palestinos.
A tragédia do Holocausto, em que cerca de seis milhões de judeus foram exterminados pela Alemanha nazista, fortaleceu o apelo do sionismo: nunca mais um povo sem pátria, sem defesa. O trauma da Shoá tornou-se parte fundante da identidade israelense moderna. Mas aqui reside o paradoxo: o Estado criado para garantir a sobrevivência de um povo perseguido tornou-se, ele mesmo, instrumento de perseguição e exclusão de outro povo — os palestinos. A terra que deveria acolher virou fronteira vigiada. A herança da dor foi usada como licença para o domínio.
O uso da Bíblia para legitimar o moderno Estado de Israel é uma operação ideológica, não teológica. Os textos que prometem terra são transformados em escritura notarial, como se Deus fosse corretor imobiliário. Mas os profetas já diziam: “A terra será tirada de vós, porque pisastes os pobres e oprimistes o inocente” (Am 5)¹⁰. A terra, na Bíblia, nunca é posse individual ou étnica: é dom condicional, dependente da justiça.
Essa distorção, porém, não é novidade. Nas Cruzadas medievais, a mesma instrumentalização da fé aconteceu. Convocadas entre os séculos XI e XIII pela Igreja latina, as Cruzadas foram vendidas como missão espiritual, mas movidas por interesses políticos, econômicos e expansionistas. A ideia de “libertar Jerusalém” dos muçulmanos era envolta por mística escatológica: acreditava-se que o retorno de Cristo só se daria após a purificação da Terra Santa. Peregrinos viraram soldados. A cruz virou espada. Massacres de muçulmanos, judeus e cristãos orientais foram cometidos em nome de Deus. A fé foi pervertida em bandeira imperial. A Cruzada era, ao mesmo tempo, penitência e violência — uma alucinação sagrada que santificava o sangue.
Curiosamente, essa escatologia também está presente no Islã. Para os muçulmanos, Jerusalém (Al-Quds) é a terceira cidade mais sagrada, depois de Meca e Medina. Ali, segundo a tradição, o profeta Muhammad ascendeu aos céus na chamada Noite da Ascensão (Isra e Mi'raj). Na escatologia islâmica, Jerusalém será palco dos eventos finais, quando o Mahdi (o “Guiado por Deus”) retornará para restaurar a justiça antes do fim dos tempos. Assim como para judeus e cristãos, Jerusalém tem peso apocalíptico no Islã: não apenas geográfico, mas cósmico. Isso explica por que os conflitos em torno da cidade ultrapassam o plano político — são guerras carregadas de misticismo, símbolos e memórias do fim.
Hoje, Israel é um Estado moderno, com cerca de 74% da população identificada como judia, 18% muçulmana e 2% cristã. Mas a convivência é marcada por apartheid, vigilância militar, colonatos ilegais e humilhação cotidiana. A mística da promessa virou doutrina de segurança nacional. A terra virou ídolo. A fé, retórica bélica. O outro, inimigo.
O Israel bíblico era chamado a ser luz para as nações (Is 49,6); o moderno Estado de Israel tornou-se reflexo das trevas do mundo: segregação, domínio e impunidade. A verdadeira terra prometida não é uma questão de controle, mas de comunhão. “Ai dos que transformam o direito em veneno e lançam por terra a justiça!” (Am 5)¹¹.
A Terra Prometida não é herança de quem a domina pela força, mas de quem caminha com humildade, compartilha o pão, respeita o estrangeiro e não oprime o fraco. Entre a terra prometida e a terra ferida, que a humanidade possa reencontrar a memória do sagrado: não aquela que abençoa impérios, mas a que ouve o clamor do oprimido e faz brotar a justiça como rio caudaloso.
Notas
[^1]: BIBLIA. Gênesis 12,1-3; 15,18. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^2]: DEUTERONÔMIO 8,11-20. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^3]: BIBLIA. Josué 6-8. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^4]: FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: Free Press, 2001.
[^5]: BIBLIA. Josué 23,12-16. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^6]: BIBLIA. Isaías 29,13. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^7]: BIBLIA. Gênesis 16 e 21. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^8]: BIBLIA. Gênesis 21,13.18. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^9]: BIBLIA. Gênesis 33. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^10]: BIBLIA. Amós 5. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
[^11]: BIBLIA. Amós 5,7. Tradução da Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1994.
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