quinta-feira, 29 de maio de 2025

Um breve olhar sobre João 16,20-23a

A promessa de Jesus no Evangelho de hoje é escandalosa para a lógica do mundo: “Vós chorareis e vos lamentareis, mas o mundo se alegrará; vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza se transformará em alegria”. Ele não nega o sofrimento, não o minimiza, mas o assume como caminho inevitável e fecundo para o nascimento de algo novo. Jesus não promete uma vida sem cruz, mas uma vida onde a cruz é atravessada pela esperança. A tristeza dos discípulos  e, por extensão, de todo o povo fiel não será ignorada por Deus, mas transfigurada. A lógica do Reino é esta: por trás da dor está sendo gerado um mundo novo. A metáfora do parto, usada por Jesus, é profundamente reveladora. O Reino de Deus nasce em dores, não em palácios. Nasce no grito da mulher que sofre para dar vida, e não no silêncio cúmplice dos poderosos. A mulher que sofre para dar à luz é símbolo de uma Igreja que não foge da história, que não se tranca na sacristia nem se esconde atrás do incenso, mas se encarna no chão do mundo, suja-se com a lama da luta, arrisca-se na companhia dos pobres. Esta imagem também evoca todas as mulheres que, nos confins da terra e nas periferias urbanas, são mães, mártires, líderes e profetas: mulheres que sustentam a vida apesar do sistema que as quer caladas, baratas e obedientes.  Temos  que  recordar, em pleno 2025, assistimos a uma cena lamentável: a ministra Marina Silva foi alvo de ataques em uma comissão do Senado da República. O mais grave não foi apenas a violência verbal sofrida, mas a omissão de muitos diante do ocorrido. Pior ainda: surgiram críticas à própria ministra por se retirar diante das ofensas, como se a vítima devesse suportar em silêncio a agressão.

A alegria prometida não é superficial. Não é um sorriso imposto por moralismo religioso ou otimismo ideológico. Não é alienação. É alegria que nasce da fidelidade à justiça, da solidariedade vivida, da certeza de que Deus está do lado dos que choram, dos que esperam e dos que resistem. É a alegria das mães que transformam o luto em luta. É a alegria dos pobres que insistem na partilha mesmo em meio à escassez. É a alegria dos povos indígenas que defendem a floresta como quem defende o altar da vida.

Por isso, quando Jesus diz que o mundo se alegrará enquanto os discípulos choram, Ele denuncia uma estrutura perversa: há um tipo de “mundo” — o das elites, dos impérios, dos sistemas opressores — que se alimenta da dor alheia, que transforma a morte dos inocentes em estatística, que celebra a vitória dos fortes enquanto despreza os fracos. É esse “mundo” que hoje se manifesta em governos autoritários, em discursos de ódio travestidos de patriotismo, em pastores e padres que vendem a fé ao capital ou ao poder político. É o mundo da extrema direita, que se alegra quando os pobres são calados, quando os direitos são retirados, quando a terra é devastada em nome do lucro. Um mundo que crucifica o Cristo todos os dias nos corpos dos negros assassinados, dos indígenas expulsos, dos LGBTQIAPN+ perseguidos, dos migrantes invisibilizados.

E o mais escandaloso é que esse mundo perverso encontra apoio dentro da própria Igreja, através da cumplicidade de parte do clero que prefere o conforto do altar à poeira do caminho. O clericalismo — que é antes uma patologia espiritual do que um simples excesso de autoridade — transforma a alegria do Evangelho em controle litúrgico, transforma a mesa da partilha em trono de domínio. Onde há clericalismo, não há povo, há plateia. Onde há clericalismo, não há comunhão, há obediência cega. Onde há clericalismo, não há Jesus, há um simulacro que serve aos interesses de castas religiosas que se aliam ao poder e traem o Evangelho.

É urgente dizer com clareza: o clericalismo é uma forma de apostasia silenciosa. É a negação prática do Cristo servidor. É uma heresia disfarçada de tradição. E, hoje, essa heresia se encontra de mãos dadas com a extrema direita político-religiosa, que manipula a fé do povo, promove discursos fascistas e transforma Jesus em símbolo de uma guerra cultural. Essa aliança profana entre altar e gabinete, entre sacrário e farda, entre púlpito e fake news, não gera vida, mas morte. Não gera alegria, mas medo. Não gera unidade, mas polarização. A extrema direita religiosa é uma versão moderna dos fariseus do tempo de Jesus: usam a Lei para condenar, usam Deus como escudo para sua violência.

A verdadeira alegria que ninguém pode tirar é subversiva. Ela nasce no encontro com o Ressuscitado, que se dá no meio dos pobres, dos perseguidos, dos pequenos. É uma alegria que não cabe nos templos fechados, mas explode nas ruas, nas ocupações, nas comunidades que celebram a vida mesmo sem ter nada. É a alegria dos mártires que deram a vida por amor, como Jesus, e que continuam a ressuscitar em cada gesto de solidariedade, em cada ato de justiça, em cada palavra profética. É a alegria que nasce da esperança teimosa, como a de Maria de Nazaré, que canta a queda dos poderosos e a exaltação dos humildes.

Enquanto alguns constroem catedrais para se proteger da realidade, Jesus continua nascendo nas vilas, sendo crucificado nas favelas, ressuscitando nas lutas populares. E é aí que devemos procurá-lo, com coragem e discernimento. Não basta esperar passivamente pelo "dia" em que não faremos mais perguntas. É preciso gerar esse dia, com nossas mãos calejadas e corações inflamados. A alegria que o Senhor promete é escatológica, sim, mas também histórica. Ela já começou onde há resistência, onde há compaixão, onde há partilha.

Esta é a alegria que nenhuma estrutura de morte pode roubar. Porque ela nasce do Deus vivo que se faz pobre, que escolhe os últimos, que derruba os tronos e exalta os humildes. Essa alegria é perigosa. Por isso é combatida. Por isso é perseguida. Mas é justamente nela que o Reino floresce. Que sejamos povo que chora com os que choram, mas que não se rende. Povo que luta. Povo que resiste. Povo que canta, mesmo debaixo da cruz. Porque sabemos: a nossa tristeza se transformará em alegria  e ninguém poderá tirá-la de nós.

Por isso, mesmo em meio às lágrimas e ao peso das injustiças, seguimos firmes, alimentados por essa promessa: a tristeza se transformará em alegria. Não caminhamos em vão. A cruz que carregamos hoje é semente de ressurreição. A esperança que floresce do chão dos oprimidos é sinal de que o Reino está próximo — e já desponta entre nós, nas pequenas vitórias do amor, da solidariedade e da fé que não desiste. 

Que assim seja....

DNonato – Vigia das alegrias indomáveis do Reino, teólogo do cotidiano, indignado pela justiça e indigente do sagrado.



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