Esta palavra de Jesus, pronunciada no contexto da ceia e da despedida, não é apenas um consolo espiritual, mas um ato profético. Ele anuncia que o Espírito Santo virá como presença ativa e provocadora, guiando-nos à verdade total — uma verdade que não é propriedade de ninguém, nem se acomoda ao conforto dos poderosos. Trata-se da verdade que liberta (Jo 8,32), que desmascara os ídolos, que revela o coração de Deus: um coração de comunhão, justiça e misericórdia.
A revelação trinitária — o Pai criador, o Filho encarnado, o Espírito vivificante — é o centro da fé cristã. Mas essa fé, se não encarnada na vida concreta, torna-se farsa. Deus não se revela para ser adorado em abstrações, mas para ser seguido no caminho da história, no chão das lutas humanas. A Trindade, por isso, não é apenas um dogma a ser aceito, mas uma vocação a ser vivida: viver trinitariamente é romper com o egoísmo, com o individualismo, com toda estrutura de morte que separa, explora e domina.
O Espírito da Verdade é incompatível com a religião domesticada, que serve aos interesses de poucos e silencia diante da dor dos muitos. Onde há manipulação da fé para fins eleitorais, o Espírito não habita. Onde o altar se torna palanque e o Evangelho vira slogan político, a Trindade é negada. Não se pode servir ao Deus Trino e ao deus mercado (cf. Mt 6,24). Não se pode invocar o Espírito Santo e justificar a tortura, a exclusão social ou a destruição da criação (cf. Rm 8,19-22).
Na raiz de todas as opressões está a negação da Trindade. Porque a Trindade é comunhão, e a lógica do sistema é fragmentação. A Trindade é relação de reciprocidade e dom, enquanto o mundo prega competição e consumo. O Deus trinitário não legitima castas e privilégios, mas derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes (cf. Lc 1,52). Ele não vive no ouro dos templos, mas caminha com os pobres, os migrantes, os oprimidos. Ele não fala apenas nas homilias bem escritas, mas no grito das mães que enterram seus filhos nas periferias, nas lágrimas dos povos indígenas expulsos de suas terras, nos olhos de crianças famintas esquecidas pelos discursos.
A promessa do Espírito Santo, que nos guia à verdade completa, é um desafio à Igreja de todos os tempos. Uma Igreja que teme o Espírito é uma Igreja estéril. Uma Igreja que silencia os pobres, que protege os poderosos, que se torna cúmplice do racismo, da misoginia e da violência, é uma Igreja contra a Trindade. O clericalismo, como alerta o Papa Francisco, é uma perversão da vocação eclesial: “É uma das deformações mais graves que a Igreja sofre” (Discurso à Cúria Romana, 2016). Ele fecha os ouvidos à profecia e faz da Igreja um reduto de castas, um sistema de castelos e escudos que protege estruturas caducas.
Por isso, celebrar o mistério da Trindade é, hoje, um ato subversivo. É gritar, com Isaías, contra os pactos injustos: “Ai dos que decretam leis iníquas e prescrevem opressões” (Is 10,1). É clamar com Jeremias: “Voltem à justiça, não oprimam o estrangeiro, o órfão e a viúva, e não derramem sangue inocente” (Jr 7,6). É viver com Jesus, que não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8,20) e que foi rejeitado pelas lideranças religiosas por anunciar um Reino que começa nos últimos (cf. Mt 20,16).
A fé na Trindade, vivida na carne do povo, é uma revolução silenciosa, mas irreversível. Como nos ensinou o Documento de Puebla, “a opção preferencial pelos pobres é exigência do seguimento de Cristo, é exigência trinitária”. Como disse Aparecida, “não podemos ser surdos ao clamor dos povos e à voz do Espírito” (DAp 66). E como bradou o Sínodo da Amazônia, “a Igreja não pode permanecer neutra diante da destruição da Casa Comum”.
Viver trinitariamente é fazer-se dom, é resistir às mentiras que se vestem de fé, é anunciar o Reino mesmo quando isso custa perseguição. É permitir que o Espírito nos conduza onde não queremos ir (cf. Jo 21,18). É deixar-se ferir pelo amor até que ele nos transforme. É ser povo, e não elite; fermento, e não vitrine; fogo, e não fumaça. E se hoje a religião virou escudo para os que oprimem, a fé na Trindade é o grito dos que resistem.
Porque quem vive a Trindade jamais se curva diante de tronos, mas se ajoelha diante da cruz onde Deus se fez irmão, e nos ensinou que só há salvação na comunhão dos que amam até o fim.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, Em escuta ao Espírito que desinstala, em comunhão com o Deus que se faz pobre, em marcha com o povo que resiste.
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