O Testemunho que Brota da Experiência.
Por DNonato – Leigo Católico, Teólogo Popular, Devoto de Nossa Senhora de Guadalupe e Licenciado em História
Após o diálogo noturno com Nicodemos (Jo 3), Jesus se retira com seus discípulos para a região da Judeia, onde começa a batizar (Jo 3,22). Tal movimento gera inquietação nos discípulos de João Batista, que rapidamente informam seu mestre sobre as ações de Jesus. A resposta de João é ao mesmo tempo teológica e antropológica: revela que cada pessoa deve reconhecer os próprios limites de origem e vocação. “Aquele que vem do alto está acima de todos” (Jo 3,31). Essa declaração expressa a diferença essencial entre Jesus e João: um é o Esposo; o outro, o amigo do Esposo (Jo 3,29), cuja alegria é vê-lo manifestado.
João Batista demonstra uma lucidez espiritual e uma humildade radical, compreendendo que sua missão é ser precursor, não protagonista. Em um contexto histórico em que líderes religiosos — tanto do judaísmo quanto de outras culturas mediterrâneas buscavam status, influência e até alianças com o poder político, a postura de João é profundamente contracultural. Ele afirma: “É necessário que Ele cresça e que eu diminua” (Jo 3,30), colocando-se a serviço do Reino com desapego e fidelidade profética, algo que precisamos prática.
Esse testemunho não nasce de retórica refinada, mas de uma vivência concreta e profunda com Deus. Aqui se apresenta uma crítica ainda atual à religiosidade meramente formal: não é suficiente ter uma espiritualidade desvinculada da vida cotidiana. A fé, como ensina Tiago, “sem obras é morta” (Tg 2,26). Uma prática cristã limitada ao discurso, a rituais ou à ostentação de símbolos externos revela-se infrutífera. O testemunho genuíno exige coerência entre o interior e o exterior, entre a proclamação e a ação. Do ponto de vista antropológico, compreende-se que toda tradição religiosa possui uma dimensão simbólica e ritual, o que responde às necessidades humanas de expressão, identidade e transcendência. Contudo, há um risco quando o rito é absolutizado e se sobrepõe à ética. Cerimônias pomposas, mesmo um batismo com milhares de litros de água ou uma ordenação com unções com litros abundantes de óleo derramado nas mãos e na cabeça não possuem valor salvífico se não estiverem acompanhadas de uma vida comprometida com a justiça social e a comunhão com Deus. Jesus adverte: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7,21).
Essa denúncia remete à tradição profética do Antigo Testamento. Isaías conclama: “Lavai-vos, purificai-vos; tirai a maldade dos vossos atos de diante dos meus olhos. Cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo” (Is 1,16-17). Jesus retoma esse chamado profético ao censurar a hipocrisia dos escribas e fariseus (Mt 23), reafirmando que o culto autêntico passa pela prática da justiça, da misericórdia e da fidelidade (Mt 23,23). Historicamente, a Igreja também vivenciou momentos de distanciamento de sua essência evangélica, priorizando o poder, os privilégios e a formalidade institucional. Nestes períodos, foram os pequenos — leigos, mártires, místicos e reformadores — que resgataram o vigor espiritual do seguimento de Jesus pobre, servo e crucificado. A autêntica tradição cristã é marcada por esse contínuo retorno às fontes: o Evangelho, os pobres e o Espírito.
Nesse sentido, os títulos eclesiásticos — diácono, presbítero (padre), bispo, pastor ou papa — não asseguram, por si, a autenticidade do testemunho cristão ou mesmo a salvação na eternidade. Como afirmou São Francisco de Assis:
“Pregue o
O verdadeiro discípulo é aquele que evangeliza com a vida, tornando-se reflexo da presença de Cristo no mundo.
Precisamos ter a consciência que independente do grau na hierarquia eclesial, todos somos membros do mesmo Corpo de Cristo (1Cor 12,12-27), e somos convocados à missão comum de anunciar o Reino, independentemente do grau de visibilidade de nossa atuação. Numa sociedade marcada por desigualdades históricas, consumismo espiritual e manipulação da fé como uma mercadoria, é urgente recuperar a simplicidade do testemunho nascido da experiência cotidiana com os excluídos, os pobres, os marginalizados — os “lascados” das periferias, como dizia Dom Helder Câmara.
Neste tempo em que vivemos o luto pela morte do Papa Francisco, pastor simples, servidor dos pobres e profeta da misericórdia somos convidados a manter viva sua memória e seu legado de uma Igreja em saída, sinodal, samaritana. Enquanto a Igreja se prepara para o conclave que elegerá o sucessor de São Pedro, cabe a nós, povo de Deus, reafirmar os caminhos abertos por Francisco: escuta dos que sofrem, cuidado com a criação, combate às estruturas de exclusão e anúncio do Evangelho com alegria e esperança.
O Espírito Santo continua a ser derramado sobre a Igreja — ontem, hoje e sempre (Jo 14,26). É Ele quem anima o povo de Deus em marcha, capacitando-o a tornar visível o amor do Pai. Esse Espírito não pertence a nenhuma casta ou elite religiosa; sopra onde quer (Jo 3,8), inclusive nas margens, nas favelas, nas comunidades ribeirinhas, nos territórios indígenas, como reconheceu o Documento de Puebla (1979): “Nos rostos sofridos dos povos da América Latina brilha a presença do Senhor”.
A vocação cristã, portanto, consiste em testemunhar com simplicidade, integridade e verdade. Que, como João Batista, sejamos capazes de desaparecer para que Cristo resplandeça. Que nossas palavras nasçam de uma vida que viu, escutou e experimentou a presença do Ressuscitado na história (cf. At 4,20).
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