segunda-feira, 21 de abril de 2025

Um breve olhar sobre João 15,1-8

“Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor.” (Jo 15,1)

O evangelho de João foi escrito para uma comunidade em crise, fragilizada pelas perseguições e ameaçada pela exclusão das sinagogas (cf. Jo 9,22). O texto surge como consolação e exortação: a comunidade deve permanecer unida a Jesus, a verdadeira fonte da vida, mesmo diante do isolamento religioso e político. É um chamado à fidelidade que gera fecundidade, à comunhão que produz resistência. Jesus fala como “videira verdadeira” — em contraste com Israel, videira muitas vezes infiel (cf. Is 5,1-7; Jr 2,21) — e se apresenta como o novo centro da aliança, substituindo o Templo por si mesmo (cf. Jo 2,19-21).

Estamos no Tempo Pascal, e essa Palavra nos convoca a permanecer no Ressuscitado como condição para frutificar. A seiva que corre da videira é o Espírito do Vivente, que nos anima à comunhão e à missão.

  • Simbologia no texto

  1. Videira: imagem de fertilidade, comunhão, promessa messiânica. Em Jesus, a vida é transmitida e sustentada.
  2. Ramos: somos nós, criaturas interdependentes, incapazes de frutificar sem a seiva do amor divino.
  3. Frutos: representam a ética do Reino — justiça, solidariedade, misericórdia, vida em abundância.
  4. Poda: ação purificadora de Deus na história e na alma humana, que elimina o que impede o florescer do bem.

O ser humano é estruturalmente relacional. Nenhum de nós é autossuficiente. Vivemos numa interdependência vital — biológica, emocional, espiritual. O ramo cortado da videira não apenas seca: ele morre. O mundo moderno, centrado no individualismo narcisista, que valoriza a "autonomia" como isolamento e o "sucesso" como acúmulo, produziu uma geração de ramos secos — sem vínculos profundos, sem espiritualidade encarnada, sem compromisso comunitário.

Como denuncia Zygmunt Bauman, vivemos em uma sociedade líquida, onde os laços se desfazem com facilidade, e onde a fé, muitas vezes, virou consumo simbólico e não transformação concreta.

É nesse contexto que emerge um fenômeno profundamente revelador: o crescimento do mercado dos bebês reborns — bonecos hiper-realistas que imitam com perfeição recém-nascidos, adotados por milhares de pessoas adultas, em sua maioria mulheres, como substitutos afetivos. Eles são alimentados, vestidos, levados a passear, fotografados, chorados.

Não se trata apenas de brincadeira, mas de uma tentativa inconsciente de compensar a ausência de vínculos reais, o luto não elaborado, ou o afeto negado pela cultura da pressa e da eficiência.

Essa prática, embora às vezes terapêutica, denuncia um mal-estar social profundo: a crise da fecundidade humana — não apenas biológica, mas existencial. Somos ramos conectados a simulacros, a substitutos de vida. Como profetiza o apóstolo Paulo, “tendo aparência de piedade, mas negando-lhe o poder” (2Tm 3,5). A substituição do filho de carne por um boneco revela o mesmo drama que afeta as igrejas estéreis: preferimos imagens controláveis à imprevisibilidade do encontro. Assim como muitos preferem um Cristo moldado à sua ideologia do que o Cristo real, que incomoda e desinstala.

O sistema capitalista neoliberal, que organiza a vida com base no lucro e no descarte, é o antípoda do Evangelho. Ele transforma pessoas em mercadorias, corpos em estatísticas, a terra em bem de exploração.

Jesus denuncia isso quando expulsa os vendedores do Templo (cf. Jo 2,13-17): o sagrado estava sendo instrumentalizado pelo comércio — como hoje acontece com igrejas associadas ao mercado e teologias que canonizam a meritocracia. O fruto esperado por Deus é a justiça (cf. Is 5,7), mas o que se colhe, frequentemente, é a opressão institucionalizada.

O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, denuncia: “Esta economia mata” (EG 53). E em Laudato Si’, amplia essa denúncia ao campo ecológico, afirmando que “tudo está interligado” (LS 91). O Deus agricultor não se alegra com uma vinha que produz lucro para poucos e fome para muitos. A videira verdadeira não é cúmplice das desigualdades: ela nos convida à poda das ambições egoístas, da ganância institucionalizada e da indiferença global.

É urgente denunciar o uso abusivo do nome de Deus por setores da direita política, que promovem um “cristianismo” higienizado, moralista, racista, homofóbico e elitista. Não é raro que se veja políticos autoproclamados cristãos armados com Bíblias e revólveres, defendendo torturadores, militarização da vida, e criminalização dos pobres. Esses ramos não produzem os frutos do Evangelho, mas do farisaísmo contemporâneo. Jesus foi claro: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7,21).

O mesmo Jesus que curava no sábado e comia com pecadores seria, hoje, condenado por muitos púlpitos que se dizem defensores da moral cristã. O Cristo da cruz é incompatível com o discurso de ódio, com o fundamentalismo ideológico, com o neoliberalismo que transforma a fé em moeda de troca eleitoral.

Outro ramo que precisa ser podado é o clericalismo. Quando o ministério ordenado se transforma em casta de poder, quando o altar se distancia da mesa do povo, quando a palavra de Deus é usada como instrumento de dominação e não de libertação, o ramo se seca. O clericalismo é uma perversão da Igreja. O Papa Francisco afirma: “O clericalismo leva à funcionalização do laicato, tratando-os como ‘ajudantes’ da missão clerical” (Discurso ao CELAM, 2013).

Muitos líderes eclesiais se acomodaram em estruturas cômodas, burocráticas, insensíveis à dor do povo. Tornaram-se ramos grossos, mas estéreis. A poda necessária é também a da conversão pastoral: uma Igreja em saída, missionária, pobre com os pobres, fiel à sua origem: Jesus de Nazaré, carpinteiro, migrante, crucificado pelo império e pela religião oficial.

Mas há esperança. O próprio Jesus nos garante: “Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto” (Jo 15,5). Permanecer não é estagnar, mas estar enraizado na Palavra, na oração, na ação concreta pelos últimos. Os frutos que glorificam o Pai não estão nas estatísticas de missas celebradas, mas na justiça promovida, na dignidade restaurada, na vida defendida.

Assim como no Cântico dos Cânticos a videira é símbolo de amor fecundo (cf. Ct 2,13), hoje ela nos chama a uma espiritualidade fértil, apaixonada pela vida, comprometida com a transformação do mundo. A poda é dolorosa, mas necessária. O galho que não frutifica será cortado — não por ódio de Deus, mas porque perdeu sua razão de ser.

Frutificar hoje é resistir. Resistir ao ódio, ao egoísmo, à neutralidade cúmplice. Permanecer em Cristo é levantar-se contra tudo que desumaniza. Que o Espírito nos conceda discernimento para aceitar a poda, coragem para frutificar onde ninguém acredita, e fidelidade para nunca nos separarmos da seiva da vida.

“Nisto é glorificado meu Pai: que deis muito fruto, e vos torneis meus discípulos.” (Jo 15,8)

DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, um galho que precisa de poda

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